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02/10/2006

 

Guilherme Cavallari - o editor do Guia de Trilhas, ciclista atuante, conta seu passado desvairado: já foi bike courier em Berlim, plantou batata na Inglaterra, quebrou pedras no Egito... Virge, o currículo do cara não é brincadeira!Por: Viviane Fuentes                   

 Fotos: Arquivo Pessoal  

 

Certidão de Nascimento

Guilherme Cavallari Gomes, nascido em São Paulo, SP, Zona Norte - diz a lenda -, no dia 15 de novembro de 1962. Véio é seu avô! Pais: Helena Cavallari e José William Facó Gomes, que saiu para comprar cigarros quando eu tinha seis anos e nunca mais voltou. Ninguém sabia que ele fumava. Minha mãe criou a mim e às minhas duas irmãs mais novas sozinha, trabalhando ora como secretária, ora como vendedora, ora como corretora de imóveis, ora desempregada.

Sapo Cidadão Pululante

Fui ator de teatro profissional, radialista, humorista, atleta semiprofissional, empresário aos 22 anos. Mas foi antes, aos 17, que descobri uma vocação: viajar. Fiquei até os 32 anos pulando de país em país.

Vocação Inata: Mudar de Endereço

Quando criança, minha família foi despejada por falta de pagamento de aluguel mais de uma vez, estudei boa parte da vida em escolas públicas, mudava de colégio quase que anualmente, mudava bastante de endereço.

Run, Forrest

Minha brincadeira preferida era física. Correr mais que todo mundo, pular mais alto, nadar mais longe, brigar sozinho contra meia dúzia de crianças mais velhas, qualquer coisa onde eu pudesse gastar minha interminável energia. Lembro que eu nunca caminhava, só corria.

Medo de tomar banho?

Tenho medo de água fria e escura. Quando tinha seis anos, caí em um lago em Atibaia, no inverno, e fui resgatado por um amigo da família, um senhor francês de uns 60 anos na época, careca, que usava peruca. Inclusive descobri que ele usava peruca nessa ocasião

Causos de moleque

Convenci minha irmã mais nova, de uns quatro anos então, a descer a íngreme ladeira de nossa casa, em direção a uma movimentada avenida no fim da piramba, em seu triciclo enferrujado.

Disse a ela que precisava se segurar com firmeza e, para garantir que não se soltasse, amarrei suas mãos ao guidão da bike. Soltei-a ladeira abaixo e fiquei acompanhando, excitado, o resultado.

Conforme o triciclo pegou velocidade, ela perdeu o controle, primeiro dos pedais, depois da bike toda, ziguezagueou e bateu contra a sarjeta. Não se machucou, só alguns arranhões. Achei engraçadíssimo, mas confesso que fiquei um pouco frustrado...

Rodinhas de apoio (traseiras) da bicicleta

Tirei as rodinhas no mesmo dia em que foram colocadas, quando tinha uns seis anos, em São Vicente, litoral paulista, para onde minha mãe se mudou, com filhos e tudo, na casa dos meus avós. Aprendi rápido a andar de bicicleta.

Passageiro Kid

Adorava andar de carro. Que criança não gosta? Mas lembro que os adultos naquela época corriam demais, fumavam dentro do carro com os vidros fechados, os carros eram verdadeiras “carroças”.

Pensamentos jogados de uma criança dentro do carro entre adultos

“Por que todo mundo fuma, c.?”... brincadeira. Pensava em carros voadores, em super poderes, em ser invisível... Coisas de menino que vê muita TV e lê muito gibi. Mas desde pequeno pensava também que a cidade à minha volta era toda cinza, cheia de carros, faltavam árvores, bichos, verde. Isso sempre me incomodou, desde muito pequeno.

O Carona

Quando adulto, a doce irresponsabilidade do caronista passou quase a ser um estilo de vida para mim. Eu pegava carona na vida. É sempre mais fácil essa existência despreocupada quando somos imigrantes. Ser gringo foi uma delícia para mim, o resgate talvez da despreocupação que não vivi na infância.

Evolução

Aos poucos comecei a querer “dirigir um pouco”, ao invés de “ser dirigido”. Um grande amigo me disse uma vez, quando eu estava saindo do Brasil pela terceira vez, rumo à Alemanha, sempre com a promessa de nunca mais voltar: “você já descobriu que consegue sobreviver em qualquer lugar do mundo, não está na hora de querer um pouco mais da vida?”

Easy easy, sem problema de dicção

(nunca tive problema de dicção, só fimose, serve?) Tenho facilidade com línguas estrangeiras, costumo aprender rápido e esquecer rápido depois. Não me recordo de nenhuma palavra que tenha sido difícil aprender. Mais difícil é “se comunicar bem”, mas isso vale para qualquer língua e, talvez, especialmente para a nossa língua materna...

Língua do Entendimento

Existe sim uma língua única, não expressa em palavras ou sons. Acho que é a Língua do Entendimento. Quando a gente encontra pessoas com quem nos identificamos, sei lá por que, essa língua se apresenta.

Lembro de várias situações em que isso aconteceu comigo. Uma vez, dormindo em uma caverna na Turquia, na região da Capadoccia, conheci um alemão que não falava outra língua que não a dele. Eu não falava alemão na época. Nos comunicamos em turco, que nenhum dos dois falava. Dividimos a tal caverna, por falta de dinheiro, por excesso de simplicidade, por vários dias.

Nos tornamos muito amigos. Anos depois, quando decidi morar na Alemanha fui viver na casa dele. Eu falava alemão então e ele inglês. Nossa amizade minguou.

Para quem está perdido o verbo é...

Sobreviver

Profissões e Profissões

Existem profissões desenhadas para nos manter vivos. Existem profissões desenhadas para nos manter íntegros. São coisas diferentes.

Trabalhei para comer e o trabalho não importava, por isso, limpador de chaminés, quebra-pedras, salva-vidas.

Trabalho hoje em algo que me completa, como autor e editor de livros relacionados com esportes de aventura.

Chaminés de Boston

Sinto falta das chaminés de Boston. Sinto falta do calor das lareiras. Por outro lado não sinto falta do frio invernal de nenhum país onde vivi. Vejo hoje claramente a diferença entre o calor do fogo e calor humano, tão presente no Brasil.

Pedras do Egito

Quando quebrava pedras no Oriente Médio eu o fazia para sobreviver, era um trabalho como outro qualquer, digno e duro. Aqui, se eu vier a quebrar pedras seria para atender a alguma demanda específica e não a uma necessidade básica. As pedras seriam muito mais duras aqui.

Colhedor de batata na Inglaterra. Colhedor de maçãs na Itália

Uma da melhores experiências que tive na vida foi trabalhar com a terra e seus frutos. Se existe um ideal de simplicidade comum a todos, acessível a todos, eu creio que é esse - a “praga” que caiu sobre Caim: viver do suor do próprio rosto lavrando a terra.

Para Caim, a terra era, no entanto, ingrata e não dava frutos. Colher frutos é um ato divino. Se eu tiver outra oportunidade de trabalhar em colheitas vou pegar sem piscar.

?Serpentes adestradas para ajudar na colheita da maçã?

Nunca ouvi isso antes! Sei que os italianos têm africanos amestrados trabalhando em diversas colheitas, ajudando por um módico preço que europeu nenhum topa aceitar.

Competição, pressa para quê?

Não sou muito ligado em competições de bicicleta. Já fui mais. Corria em provas de Cross Country de Mountain Bike e me diverti um tempo com isso. Mas aí  percebi que o que estraga as corridas é a pressa.

Para que pressa se estamos no meio da natureza, pedalando por montanhas maravilhosas, atravessando rios limpos, ao lado de cachoeiras fantásticas?

Acho a competição natural e saudável. O que f. tudo é a síndrome do vencedor, a idéia de que “é preciso ser o primeiro”.

Competir é legal quando a gente perde e ganha.

Limites: conhecê-los

O legal não é superar limites e sim “conhecer seus limites”. Tem uma grande diferença entre as duas coisas. Conhecer nossos limites - físicos, psicológicos, intelectuais, de sociabilização, etc - é conhecer importantes facetas de nós mesmos.

Não existe laboratório mais completo para cada ser humano do que nós mesmos.

Tandem: bicicleta para dois

Na tandem, vou sempre na frente, sempre. Inventei até uma regra para a minha tandem: “o dono sempre dirige”

3º lugar na categoria tandem em 2002 no Iron Biker

Foi baba, só tinham 4 competidores, há, há, há... Mas não foi moleza fazer a prova de tandem. Nada é moleza quando se pedala uma bike dupla em terreno acidentado. O desafio é imenso, a recompensa é proporcional.

Tandem, pra que te quero?

Para transformar em coletiva uma experiência individual. Eu acredito que é na comunhão, nas experiências, que aprendemos mais sobre nós mesmos. O outro é o melhor espelho que existe para nós. As diferenças se encurtam, as afinidades se estreitam. Sou da teoria que andar de tandem é a prova máxima para o sucesso de um casamento.

Desafio coletivo

Ver-se diante da nossa incapacidade de sermos seres coletivos. Não tem frustração maior, eu acho. Fracassamos em duplas sobre uma bike, fracassamos no casamento, na sociedade, como pais, como filhos, etc. Tudo representa o mesmo fracasso: incapacidade social. A tandem pode ser a prova dos nove.

Piloto X Stoker

Em português eu costumo chamar o piloto de “capitão” e o stoker de “segundo”. Gosto dessa nominação, que eu mesmo decidi organizar, justamente porque as palavras definem as funções.

Prós e contras da tandem

Quando perdemos, perdemos em dobro. Quando ganhamos, ganhamos pela metade. Parece ruim? É ótimo.

Bike Courier em Berlim

Minha rotina era ótima: livre pela cidade, conhecendo intimamente ruas e hábitos dos habitantes, fazendo esporte e ganhando dinheiro. Mas pedalar às vezes 180 km em um dia, com chuva, sol, neve, a ventania típica de Berlim, não é fácil.

Trânsito na capital alemã

Educado.  A grande diferença do trânsito lá é o entorno... Mais praças, mais árvores, mais verde. Coisas que mudam a personalidade das pessoas em uma metrópole, coisas que refletem no modo como as pessoas dirigem seus carros.

Serviços de bike courier no Brasil

No Brasil acho que não funciona esse tipo de serviço por um problema puramente econômico. Aqui nós temos um enorme contingente de motoboys, que cumprem distâncias absurdas, longas horas diárias, por salários de fome. Não tem como competir com eles de bicicleta.

Vida de Artista: ...Homem-Cueca?

Acho que estou mais para Homem-Ceroulas... Faz tudo que o Homem-Cueca faz e ainda esquenta as coxas...

Homem da cueca vermelha

Coincidentemente, ou não, quando eu tinha uns 20 anos fui convidado para fazer teste de câmera para um filme do David Cardoso. Nem sei por que não tentei o papel. Ah, se arrependimento matasse!

Produzindo e transpirando

Produzia o programa Transpiração na Rádio Transamérica FM de São Paulo. Fazia diversos personagens humorísticos, entre eles a Clotilde Advice, uma sexóloga tarada que dava conselhos no ar.

A personagem ficou tão conhecida no ar que o Gugu Liberato a convidou, me convidou, para ser jurado(a) de seu programa Viva a Noite.

Fui julgar o concurso do Rambo brasileiro, vestido de Clotilde. Graças ao bom Deus não tenho cópias dessa passagem da minha carreira artística...

Ping-pong

Tomar um rumo na vida ou seguir uma trilha nesse mundo?

Nem um nem outro. Fazer sua própria trilha é mais meu estilo.

Lama ou deserto?

Lama, definitivamente. Sem água não há vida.

Pedra ou cascalho?

Pedra, porque cascalho é a pedra destruída pela mão do homem.

Subida ou descida?

Subida, enquanto meu corpo permitir. De moleza já chega a vida!

Em grupo, a dois, ou sozinho?

Tanto faz, cada situação pede uma postura, temos que nos adaptar.

Peregrino atuante? Ou explorador inconstante?

Curioso inveterado.

Que trilha, aos arredores de SP, é o caminho da felicidade?

Está cada vez mais difícil de encontrar “trilhas ao redor de São Paulo”. A objetividade capitalista da metrópole vai transformando as trilhas em caminhos supérfluos. Mas não podemos perder as esperanças e devemos continuar atentos, buscando.

 

 

 

Ou dá ou desce

 Um conto inédito e verídico

de Guilherme Cavallari

Certa vez, um motorista de caminhão de botijão de gás me deu uma carona no leste da Turquia. O sujeito dirigia feito um alucinado por uma estradinha sinuosa margeando um rio.

Com apenas uma mão no volante. Com a outra mão ele indicava o rio, apontava um pedaço de sabonete decorado com pentelhos largado no console e ria para mim. Entendi que ele sugeria um banho no rio, porque fazia um calor infernal.

Eu vestia bermuda, o que não é muito “ortodoxo” no leste turco ou em qualquer outro país muçulmano. De repente o caminhoneiro deixa de apontar isso ou aquilo e pousa a mão calejada sobre minha coxa.

Ridículo. Eu tenho 1,80 e peso mais de 80 kg, ele era bem mais baixo e gordinho. Empurro a mão dele para o lado. Ele insiste com a “mão boba”. Comecei a achar menos graça na história. Empurro a mão com força. Ela volta, dessa vez me apertando as carnes.

Perco o humor e começo a xingar o safado, em português mesmo, que nem liga e abandona a outra mão do volante e começa a me apalpar feito fruta na feira. Puxo uma faca dobrável que trazia sempre comigo, abro-a e encosto a lâmina no nariz do sujeito, enquanto tento estabilizar o caminhão com a outra mão.

Não funcionou, ele quer usar aquele sabonete em mim e quer que eu o ensaboe também. Asco. Pego a faca e finco no banco de plástico vermelho entre nós dois. Fim da carona. O motorista, puto da vida, me xinga um monte e manda eu descer do caminhão.

O famoso “ou dá ou desce”. Desço e passo as próximas 6 horas esperando alguém me levantar da estrada, semideserta.

 

 

 

 

Guia de Trilhas" de Guilherme Cavallari é prático e indispensável para para quem gosta de pedalar e, às vezes, nem sabe por onde começar. À venda em lojas de bicicletas, de artigos de esporte de aventura, livrarias, revistarias e diversos sites. A lista completa dos revendedores autorizados está no site www.vianatura.com.br

 

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