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Nota

Em 1988, com 17 anos, Viviane Fuentes escreveu em um mês seu primeiro conto, intitulado Alexandre, O Misógino. Porém ela o reescreveu incansavelmente durante anos para, por fim, retornar ao estilo original. Segundo a autora, apesar de de o texto ser ingênuo do ponto de vista literário, ela o adora pelo valor emocional (é autobiográfico) e pelo exercício da busca de estilo que Alexandre, O Misógino proporcionou.

 

todos os textos e roteiros contidos neste site estão registrados na biblioteca nacional, plágio é crime e um mais um é igual a dois. não os utilize sem a prévia autorização e créditos devidos.

Alexandre, o Misógino

De: Viviane Fuentes

 

 

 

 

Numa determinada fase da minha vida, todos os fatos ocorridos - acúmulo de confusões e desavenças - pareciam-me completamente carmáticos. Eu estava bastante retraída e exigente na postura esperada dos relacionamentos em geral. Principalmente dos homens como parceiros. Sempre estava sozinha e adorava estar. Era minha natureza. Liberdade “privada” não me agradava. Gostava de estar nas ruas e ver o que acontecia com as nossas crianças, com os nossos andarilhos, estar com os amigos... Enfim, também tomar um trago. Às vezes sentia fortemente a necessidade de conquista, de testar minha capacidade. Satisfação de ego. Em tais momentos esse espírito adentrava-me sem freio. Cantava todos os meus amigos. Nunca estava sã e sim tomada por um impulso alcoólico. E recebia “nãos” como retorno das minhas cantadas. Ainda bem que tinha ótimos amigos que entendiam as fases pelas quais eu passava, percebendo que minha intenção, geralmente, era outra da qual demonstrava.

 Afinal “amigo não se come, degusta”.

          Depois deste tipo de experiência, comecei olhar pessoas que não tivessem o menor vínculo comigo, freqüentando os lugares mais estranhos da cidade - sítios suspeitos- onde,  mulheres não eram as mais desejadas, mas eu adorava lugares assim.

            E foi naquela noite, ainda me lembro...Uma noite de verão!

           Eu estava num bar, com duas amigas, tomando um drinque, quando de repente vi um garoto:

            Confusão.

            Olhos claros, azuis, corpo pequeno e cabelo comprido.

            Tons, cores, confusão. O olhar-olho daquele garoto.        

            Esclarecimento.

            Um olhar-mar que não mostrava destino nem a vergonha borbulhante de suas ondas: a transparência - Abstração-me! - de verde a azul.

            E eu pensando que fossem dois olhos, um par de pote de mel.

            Escorreguei.

            Meus Deus! Estava me afundando e não conseguia sair, debatia meus cílios, eram meus braços que se pestanejavam tentando sair dali, pois aquele olhar... Era tão bom...  Que eu iria com os afogados de Iemanjá! Morte doce e lenta. Eu, afogada, no leito de espumas leitosas, de ondas já quebradas pelo vento, mornadas do sol. Olhos verdes ou azuis de olhar mel.  Iemanjá, sua alma, já tinha me levado com ela e para àquele de olhos de mar, corpo pequeno, cabelo comprido.

            Pesadelo.

   Já o amava.

   Vida.    

            Realidade. Ele me olhava, eu o olhava. Os olhares aos poucos ficavam recíprocos.

            Eu o olhava introvertidamente, não assumindo totalmente a sedução. Ele olhava fazendo um gênero de desinteressado. Passamos horas nos olhando, como se fôssemos autênticos “voyeurs”. Nos olhos dele era claro enxergar a intenção: “continue me olhando, eu gosto de ser observado, mas saiba, baby, apenas te olho para satisfazer-me e saber que sou notado... Pensa que sou misógino? Mas não é da sua conta.”. Em meus olhos a intenção era outra:...“estou te olhando, continuo te olhando e ficarei te olhando até eu me cansar.”.

            Nesse meio tempo, - eu já tinha ido umas três vezes ao toalete - chegou uma garota que mais parecia um chimpanzé travestido de mulher que o tirou do meu foco. Filha de uma puta! Eu não queria nada com o rapaz, mas me deixasse olhar um pouco mais. Queria me divertir!

            O chimpanzé -  já  sentado ao seu lado, no mesmo galho - não parecia ser sua fêmea, mas insistia em beijá-lo, e ele doava sua boca, como quem doa órgãos, e sem movimentos musculares.

            Pensei: “Xiiiii... balde de água fria na minha investida”.

            Comecei a ficar alcoolizada e descarada. Ainda fazia o quatro.

            Resolvi escrever-lhe um bilhete com meu nome e telefone. Minhas amigas arquitetaram um plano para que eu superasse minha frustração: Na hora em que fôssemos embora, uma delas esbarraria no garoto e eu, logo em seguida, colocaria o bilhete no bolso de mão da jaqueta jeans que ele usava. No meio do tumulto do esbarrão - deduzimos que o chimpanzé-fêmeo não notaria o papel sendo colocado - e logo atrás de mim viria minha outra amiga...

            Tomei mais dois chopes e nada me incentivava a executar o plano. Continuávamos a nos olhar, mesmo com a macaca ao seu lado, quando de repente surgiu-me uma idéia, junto com uma terceira amiga, que acabava de chegar. Cumprimentei-a e em seguida relatei o fato que ali se passava. Fiz-lhe uma proposta onde, ela seria mensageira do meu bilhete. Não pensou duas vezes e topou... Mas perdeu o momento que o garoto estava  sozinho.                                    

            O bilhete não foi entregue.

           Queria beber mais. Minha grana tinha acabado. Minhas amigas acharam-me suficientemente alcoolizada e não pagariam mais nenhum chope pra mim. Fiquei irada, queria beber mais. A situação estava difícil. Juntei moedas. O valor total pagava meio chope. Fui ao caixa e pedi a bebida. Não sei se por piedade ou porque a garota do caixa já me conhecia, deu-me meio chope a mais, sem cobrar! Que incrível! Tinha um chope inteiro em minha mão direita. Cheguei à mesa e imediatamente fui reprovada por minhas amigas. Ignorei-as. Foi então que elas decidiram ir embora. Eu não queria ir, pois, sentia que alguma coisa aconteceria! As duas se levantaram e foram em direção à saída. É claro, eu não faria nada. Apenas levantei-me e as acompanhei. Cabisbaixa, passei pelo garoto, e o encarei a fundo. Ele não se importou com a macaca do seu lado e também me encarou. Nos despedimos como nos cumprimentamos e como nos conhecemos: “via olhar”.

           Cheguei em casa e quase tentei suicídio com a televisão. Adormeci antes do ato.

II

          Dormi seis horas. Acordei de ressaca. Tomei café da manhã e fui para o trabalho. Durante o dia inteiro passaram flashes na minha cabeça referente à noite anterior:

            — “Veep, você não é de nada, não assume seus desejos, enruste e não os realiza...” Minha consciência gritou o dia inteiro frases desse tipo na minha cabeça. Lembrei-me da face do rapaz: ele era super aguado - de água doce. Eca! - bonitinho até, tinha a altura que eu gostava... Mas não exalava absolutamente nada. Fiquei feliz por não lhe ter entregado o bilhete, não queria ver o rosto daquele rapaz nunca mais, nem se ele dissesse que me amava!

III

Uma semana após o “incidente do bilhete, combinei com as mesmas amigas que, ao sair do trabalho, às 20h30, eu me encontraria com elas naquele mesmo bar, para tomar aqueles mesmos chopes.

            Minhas amigas já estavam lá quando cheguei. Passamos a noite conversando, rindo e nos distraindo com papos boçais. Mas eu não parava de pensar no “garoto do bilhete não entregue”. Mesmo com o desprezo que sentia por ele, mesmo assim, queria vê-lo. Esse era mais um dos motivos pelo qual eu estava ali. Nada óbvio me levava a crer que ele iria naquele bar, aquela noite, pois ali, eu freqüentava há anos e nunca o tinha visto lá. Mas seu perfil coincidia com o do bar e minha intuição - ou talvez minha vontade árdua - dizia que ele estava próximo e que logo apareceria. Uma de minhas amigas interrompeu meus pensamentos dizendo:

            — Tenho uma notícia que vai te deixar muito feliz... Lembra o cara que você flertou há uma semana, neste mesmo bar?

            Respondi que sim com a cabeça. Compenetrada no que ela diria, consenti que continuasse.

            — Pois é, ele acabou de chegar e está bem atrás de você. Troque de lugar comigo!

            O lugar que ela repousava seu traseiro, no banco, ficava exatamente à frente de onde o fulano estava. Eu sabia que estava meio “altinha” mas me sentia bem fisicamente... Porém, quando recebi a notícia, o álcool subiu todo para a cabeça. E a senti girar. A respiração travou, deu vontade de fazer xixi e quase gritei pela minha mãe. Pedi licença às minhas amigas e fui ao toalete. Fui. Usei o vaso sanitário, molhei bastante meu pulso, fiz vinte respirações abdominais, dei mais três pulinhos, para que o álcool descesse da cabeça. Voltei. Sentei-me na mesma cadeira. No meu bolso havia três fichas de chope, sai da mesa e fui buscar um. Quando cheguei no balcão, alguém já estava lá e eu não percebera. Era o garoto - que até aquele momento não sabia seu nome. Passei meu braço por cima de seu ombro para alcançar o balcão. Com a ficha na mão, pedi um chope. Ele já havia pedido o seu. Mas, antes de pedir a bebida quase voltei correndo para minha mesa, ao tê-lo visto. Eu tremia - sempre desconfiei que sofria de uma doença grave, da qual não tinha conhecimento, para ficar de tal maneira.

            Que situação ridícula! ! Queria me aproximar do cara e quando eu lá estava... Tremia... E o escambáu! Mas logo decidi brincar com minha insegurança. Comecei olhá-lo de baixo para cima sem olhar em seus olhos - intimando-o com malícia. Ele fez o mesmo, só que no perfil de meu corpo. Não me olhou nos olhos também.

            Pensei: “estamos na mesma situação”.

            Não iríamos conseguir.

            De repente nossos olhares se cruzaram.

            Ambos ficaram tímidos.

            Eu tomei a iniciativa.

            Soltei as primeiras palavras:

            — Oi. (com ar de malícia) Tudo bem? (como quem pergunta: lembra-se de mim?).

            —Tudo bem - respondeu à minha pergunta.

            Logo em seguida, pegou seu chope e seguiu rumo à sua mesa. Eu fiz o mesmo, só que rumo à mesa onde minhas amigas estavam. Sentei-me.

            Minhas amigas acusavam-me de bunda mole, covarde, impotente e outras coisinhas mais. Tive a certeza de que faltava proteína na minha bebida.

            Contei-lhes o que tinha acontecido há alguns segundos atrás - talvez levantasse o meu ibope - e deixei claro que era tudo que eu podia fazer, o máximo e o suficiente. Elas se calaram por alguns instantes, mas quando perceberam que eu não iria fazer mais nada e que tinha a consciência tranqüila, uma de minhas amigas encarou o garoto com sedução. Senti-me insultada. Afinal, qual era da minha amiga? Querer seduzir o indivíduo que eu flertava? Então, ela disse:

— Se você não consegue tomar uma atitude... Eu tomo, benzinho. Comecei a girar o pescoço a cento e oitenta graus. Estávamos bem próximos. Nesse momento, notei que ele sentara num lugar mais confortável para nos paquerarmos! Que lindo! Que lindo passarinho o escambáu!

            Às vezes nossos olhares se encontravam e outras não. A cada dois minutos nos olhávamos e essa atitude começava a surgir acompanhada de sorrisinhos.

            A distância de um para o outro, era a de uma cabeça  imaginária. Houve uma oportunidade em que, quando o olhei, ele olhava fixo um ponto qualquer do bar. Parecia uma pessoa séria. Tomei coragem e exclamei:

            — Nossa! Que cara séria!

            Ele percebeu que eu havia iniciado um papo. Mas não ouviu direito o que eu falara. Pôrra!- pensei - terei que repetir a cantada. Repeti-a em tom irônico e com outra entonação na voz. Já que a cantada era tão ridícula, criatividade na repetição talvez ajudasse.

            Então, ele respondeu:

            — Preocupação.

            — Nossa! Preocupação com o quê?

            — O que você disse?

            — Preocupação com o quê?

            — Não, antes disso.

            Repassei o texto que estava escrito na minha cabeça. Pensei: “que saco! É a terceira vez que vou repetir”. Repeti monossilabicamente:

            — Nossa! Que cara séria!!

            Ele contestou:

            — Não, ainda antes disso.

            — Antes disso, pra você, eu não disse nada.

            — Acho que sim

            — Eu tenho sempre o texto decorado quando faço uma pergunta ou um comentário.

            — Ah...o script...

            — É. Exatamente!!

            — Você escreve?

            Olhei meio assustada pra ele, ao ouvir a pergunta. Como ele sabia que eu escrevia? Seria coincidência? Ou estava ironizando a situação? Ou será que ele sabia do bilhete, com meu nome e telefone, que escrevi e não consegui lhe entregar? Será que ele sabia do meu diário??

            Pensei: “esse cara é bem esperto, deve ser um grandessíssimo cínico. Ele deve estar querendo insinuar que sei escrever (bilhetes), mas que não sei entregar o material na mão do editor interessado”. Então era um jogo aquela pergunta.

            Depois de segundos de reflexão, raciocínio e boca aberta, respondi à sua pergunta:

            — Por que pergunta se escrevo?

            Ele fez um olhar de mistério. Eu continuei:

            — Como sabe que escrevo?

            — Você não acabou de dizer que nunca esquece o "script"?

            Nossa!! Que alívio!! Então não era um jogo. Sorri aliviada, pois não tinha nenhuma relação àquela pergunta com aquele bilhete ou o com meu diário.

            — Você é carioca?

            Perguntou.

            — Não. Por quê?

            Respondi já sabendo a resposta que viria.

            — Por causa do sotaque.

            Sempre que eu conversava com alguém pela primeira vez, surgia essa pergunta: “você é carioca?”.

            Meu sotaque mesclado vinha do ócio dos domingos de qualquer paulistano, misturado com a gula do carioca em engolir e arrastar as palavras.

            — Não, não sou carioca. Meu sotaque é assim porque nasci no interior de São Paulo, divisa com Minas... Morei também dois anos na Bahia.

            Respondi, justificando- me.

            — Ahh...

            Respondeu-me parecendo entender perfeitamente e completou:

            — Eu tenho trinta anos.  

            Ouvi aquilo sem entender, eu nem sequer tinha perguntado sua idade. Dei-lhe um retorno do seu comentário:

            — É?

            Fingindo ter dúvidas, continuei:

            — Eu lhe daria trinta anos.

            — Você não acredita?

            — Sim, acredito. Mas, na realidade, eu chutaria 24 anos - menti.

            — Pois é, eu menti, tenho 24 anos - disse.

            Que beleza! Tínhamos acabado de nos conhecer e já estávamos mentindo um para o outro!

            — Pô, cara! 24 ou 30? - retruquei.

            Ele não respondeu e seu silêncio quase me deixou confusa.

            — Não, não tenho 24 anos, tenho 30 - respondeu.

            — Você acha que sou velho?

            — 30 anos é uma idade maravilhosa! - respondi cinicamente.

            Notei que ele ficou sem jeito, pelo tom da minha voz. Senti-me culpada e tentei corrigir a falsa delicadeza. Afinal, acabáramos de nos conhecer. Tentei ser razoável:

            — Tenho 19 anos e aparento ter mais, já pensou quando eu estiver com 24? Aparentarei quarenta e poucos anos.

            Não agüentei, tentei, mas exagerei. O que eu dissera a pouco não adiantara muito. Ele fingiu acreditar em minha idade para ser simpático.

            Mas, afinal, que importância tinha? Estávamos nós, em processos burocráticos ou fazendo ficha de emprego?

            Estávamos apenas tentando nos conhecer.

            — Quantos chopes você tomou? -  perguntou.

            Pensei: “esse cara é louco, suas perguntas são tão fora de hora e sem cabimento. A pergunta veio por eu, talvez, estar parecendo embriagada?”

            Seriam meus olhos - que eram pequenos, esticados e caídos - ou minhas palavras que já estavam tropeçando? Ou seria um problema seu com os seus “quantos”?

            Defendi-me:

            — Apenas bebi 12 chopes.

            Ele fizera uma expressão de quem confirmara sua tese, a de que eu estava bêbada. Tentei deixá-lo na dúvida:

            — Talvez...Seis, cinco, quatro ou apenas um.

            — Quantos?

            — Não me lembro.

            Conversamos durante algum tempo. Ele me contou que trabalhava numa loja de móveis atuais. Detalhou como era lá, quantas horas por dia trabalhava, reclamou da displicência de seu chefe. Conversamos também sobre a dificuldade social trabalhística em empregar homens com menos de um metro e sessenta de altura... Bom, eu mal falei de mim. Minha atenção estava voltada àquele papo tão interessante e àquela pessoa que parecia tão frágil.

            Estava convencida que tinha conseguido conhecer um rapaz que se chamava Alexandre e sem perceber transtornara minha vida em uma semana.

            É, seu nome era Alexandre.

            E tinha uma história pra contar.

            Estava satisfeita.

            Já havia 20 minutos que conversávamos quando notei seu olhar desviar com precisa atenção para uma direção específica. Olhei também.

            Era uma garota que se aproximava.  Ele ficou sem graça com minha presença a seu lado ou talvez sem graça com a presença da garota que se aproximava. Ou talvez sem graça com sua vaga existência.

            Ele a conhecia, deu-me a impressão de que já a esperava. A garota sentou-se exatamente no espaço que tínhamos entre nós, o de uma cabeça imaginária, só que, a partir daquele momento, não era mais uma cabeça imaginária e sim um melão com peruca de nylon. Voltei à minha posição inicial.

            Tinha dúvidas em deixá-los conversando, só os dois, e/ou participar da conversa. De qualquer forma, preferi deixar os dois a sós. A partir daquele momento preferi esquecer que Alexandre tinha nome.

            Voltei a conversar com minhas amigas, tentando ser o mais natural possível, fingindo não ter sido descartada, nem a possibilidade de, por um garoto que se chamava Alexandre e que trabalhava numa loja de móveis e que, naquele exato momento, estava muito entretido com a conversa da garota.

            Ela era quiromante e pegava suas mãos falando-lhe sobre o futuro. Tentei ouvir disfarçadamente a conversa. Ouvi algo sobre caminhão de lixo, que talvez ele fosse atropelado por um. Não. Talvez, aciden...Acidentado! Por um carro de bombeiro! Sim, acho que era isso! Não consegui ouvir o resto. Droga! Estava curiosa, e essa perfuração no meu tímpano me atrapalhando!

            Consegui entrar no meio da conversa dos dois.

            Derrubei meu copo de chope na roupa preta da garota. Caíram apenas gotas e se o melão não fosse bom, estragaria.

            Fingi nada ter acontecido. Minhas amigas acharam que fora proposital. Mas, conscientemente, não tinha a mínima intenção... Talvez a força do meu inconsciente impulsionara o copo ou talvez a peruca de nylon mesmo. Alexandre olhou-me, achando engraçado a garota estar parcialmente molhada.

            Fiquei mais algum tempo no bar e naquela insuportável situação.

            Decidimos ir embora. Fiz questão de não acenar um “adeus” ao garoto com nome.

            Fui pra casa pensando: “não, Veep, não era esse rapaz que você pensava casar e ter filhos”.

            Decididamente, não era.

IV

Era final de ano. Estava trabalhando muito. Datilografando quatro calhamaços de arquivo por hora. Passava muitas noites sem conseguir dormir. Tentava esquecer: A S D F G espaço dedão H J K L Ç, embaixo, Z XCVB espaço dedão N M VÍRGULA PONTO... Não conseguia. Começava tudo de novo. Aos domingos, levava material de trabalho pra casa. Houve um sábado que decidi, literalmente, não sair à noite, poupando assim minha energia. Evitaria até telefonemas. Era meia-noite. O telefone toca e eu atendo. Um amigo carioca estava de passagem por São Paulo. Fazia um ano que eu não o via. Ao conversar com ele, mudei de idéia:

            — Claro! Vamos sair e tomar alguma coisa e contar as novidades!! Estou com saudades.

            Marquei de nos encontrarmos no Guetalla, o bar que eu estava freqüentando.

            Ao chegar atrasada, entrei e não vi meu amigo. Fui ao toalete, voltei e fui em direção ao balcão de fichas:

 — O de sempre - disse.

           O rapaz do caixa já sabia o que eu beberia

           — Quantos?- perguntou.

            —Três - respondi, lembrando-me de alguém sem ter me esquecido o "quanto".        

            Tirei o dinheiro da bolsa para pagar a bebida, nesse movimento, quem eu vejo e que também me vê? Exatamente! Alexandre! Que estava sentado com alguns amigos. Peguei o chope. Fui até a porta do bar para esperar meu amigo. Mas logo voltei. No caminho, para sentar-me, passei ao lado de Alexandre que não tinha nada de grande. Ignorei-o.

            Fiquei na porta do bar, lá estava melhor, olhando os carros que passacam - dei um gole - observava os letreiros do cinema, que ficava à minha frente, do outro lado da avenida. Estava em cartaz “Henrique V”; “9 1/2 Semanas de Amor”; “Ladrões de Sabonete”, filme da mostra internacional daquele ano.

            As pessoas por mim passavam - mais um gole - e me encaravam. Em seus pensamentos, deveriam perguntar:

            “está afim de programa, garota?”

            Esperei um pouco mais até que meu amigo chegasse. Finalmente, ele chegou. Abracei-o, beijei-o. Conversamos um pouco, do lado de fora do bar, e fomos até o terceiro e último chope. Decidimos ir para outro bar, um bar mais clean. Passamos o resto da noite, nos admirando, contando tudo que tinha acontecido em um ano, que era o tempo que a gente não se via... Enfim, matamos a saudade.

            Fora uma noite muito agradável.

            Cheguei as cinco da manhã em casa. Minha intenção de descanso fracassara. Quatro horas depois teria que me retirar da cama e, já tirando a coberta dela,  pensava sobre a atitude infantil de esnobar Alexandre. Ridículo e imaturo o que eu tinha feito: “Veep, toma-lhe três beliscões no dedinho do pé”. Doeu. “Merecido”.

            Eu entendia o impulso que me levara a agir daquela forma: meu estava orgulho ferido e só ferira a mim mesma. Tentava tirar Alexandre da minha cabeça e não conseguia...

            Adormeci sem perceber

          Considerando os agouros que eu tinha passado, o domingo fora bem produtivo. Consegui datilografar um artigo de duzentas e vinte páginas.

      

            Quarta-feira. Combinei de ir ao show imperdível de Paco de Lucia com duas amigas.

            Eu o adorava.

            Fomos.

            Do começo ao fim, o show fora fantástico. Mali, Mila e eu saímos extasiadas do concerto para três violões, com Paco.

            Bebemos um pouco durante o show. A bebida naquela casa de espetáculos era bem cara. A noite estava agradável, quente e fresca, só faltava umedecer um pouquinho mais nossas gargantas. Decidimos ir pro Guetalla.

            Quando chegamos, notei uma cena que se repetia. O filme voltara ao início da fita.    Alexandre estava no mesmo lugar, da última vez que o vira, quando encontrei meu amigo carioca. Eu estava, na mesma posição, tirando fichas pro chope. Só que dessa vez, nos cumprimentamos como duas pessoas normais.

            Após tê-lo saudado, peguei a ficha da bebida e fui para uma mesa bem distante à dele. Minhas amigas me estranharam, pois, sabiam que eu estava super afim de vê-lo. Notando o espanto em suas faces, reagi:

            — Hoje eu não estou afim.

            Sentamos as três raparigas à mesa. Conversávamos sobre coisas agradáveis. Nossas auras deveriam estar brilhando.

            Alexandre e eu nos olhávamos, sorrindo um pro outro. Ele num canto do bar e eu no outro. Ambos querendo se aproximar, pra falar...E acontecia ali um festival de timidez...Ou cinismo... Talvez burrice.

            Saí da mesa e fui pegar um chope - era o quinto da noite - quando retornei, havia um homem tentando puxar um lero furado com minhas amigas. Parecia incomoda-las. Sentei-me de tal forma à mesa que minhas costas, de frente ao suposto inconveniente, o excluía da roda e atrapalhava sua conversa... O que pensavam os homens, ao verem mulheres sozinhas ou acompanhadas por amigas, pela noite? “Mulheres sozinhas! Procuram alguma coisa. Um companheiro por uma noite. Talvez sexo, talvez carinho. A gente finge que vai dar carinho e pega o sexo. Ou quem sabe, procurem confusão”.

            Circulou um ar diferente em nossa mesa. Era o som que saia da boca do homem-incômodo que, dez minutos atrás, perturbava minhas amigas. Resolvemos dar-lhe atenção. Pensei: “afinal, somos todos carentes”.

            Ele nos contou que trabalhava numa firma de arquitetura, era alemão e morava “em Brasil” há nove anos. Ele estava bastante embriagado. Quando andava, suas pernas pareciam trancinhas de rosca caseira. Nos divertimos com ele, que até já sabia que eu estava paquerando Alexandre, e então me aconselhou:

        — Beije o porta-guardanapo, ele vai morrrrer de ciúme.

            Sempre que o estrangeiro saía da mesa, voltava com a mão cheia de tulipas de chope. Numa de suas saídas, vi uma cena que acontecia paralela à nossa mesa. O gringo, de repente, foi até dois caras, apontou o dedo no nariz de um deles e falou algo que não ouvi. Senti algo errado. Perguntei a Mila se ela tinha ouvido o que o alemão tinha dito ao rapaz. Ela repetiu com as palavras dele:

            — “Não fica me olhando, pois não gosto que homens me olhem”.

            Ao ouvir aquilo, fiquei envergonhada. O idiota que falara aquilo estava em nossa mesa.  Peguei minha bolsa e propus que fôssemos embora. As meninas pediram pra que eu me acalmasse.

            Assim que o homem-incomodado retornara à mesa, com cinco chopes na mão, achando que ali permaneceria, conversando com as três, levantei-me da cadeira furiosa, encarando-o. Eu tenho um pouco mais de um metro e cinqüenta, ele deveria ter metro e noventa. Perguntei-lhe:     

            — O que você disse a um daqueles rapazes? - apontei o dedo na direção deles.

            — Para eles não ficarem me olhando.

            — Por quê?

            — Porque não gosto que homens me comam com os olhos, isso me incomoda.

            — E se a ceia fosse de outra forma? - subjetivei - porque ele apenas passou o olhar por você, como passaria por qualquer outro objeto, pessoa, inseto ou por uma de nós. O que te incomoda é o fato dele saber que é gay  e estar de bem com isso.

            — Qual é que é? Eu não gosto de homens.

            — Você sabia que aqui é um lugar público?

            — Sei e daí?

           — O cara que você ameaçou é nosso amigo, sabia disso? - disse apontando-lhe o dedo no nariz.

            Ele ficou meio sem jeito e não respondeu nada. Continuei:

            — Somos freqüentadoras assíduas desse bar e todos que aqui freqüentam são nossos amigos. Compartilhamos a partida da noite e, sem perceber, dividimos nossas tristezas, carências e a bebida juntos, mesmo sem saber nossos nomes, profissão ou tragédia individual. Não sei porque se irritar com...

            Fui interrompida.

            — Eu me irrito mesmo e se eles continuarem me olhando vai ter briga. Não estou nem aí. Não dei liberdade pra eles, entendeu?

            — Então, quer dizer que não se importa mesmo?

            — É isso aí!

          — Só que tem um porém, você está sentado com três garotas que nunca procuraram confusão, portanto se estivesse sozinho e não em nossa mesa, poderia ameaçar quem quiser, apesar d’eu achar estupidamente ridícula sua atitude, o problema é exclusivamente seu. Mas você está na nossa mesa e nós mal lhe conhecemos, e ainda quer arranjar confusão?

            O gringo foi se encolhendo... Então me respondeu:

            — Mas eu não estou acostumado a ser paquerado por homens.

            — Então eu lhe darei uma dica: não freqüente este bar. Aqui os homens, a maioria, são homossexuais. GAYS. A melhor coisa que você faz é procurar outro bar para tomar sua bebida.

            — Mas eu tenho direito de ficar aqui, estou pagando o que consumo.

            — Mas vai ser incomodado, pois o nada te incomoda!

            Ele deu uma pausa reflexiva e respondeu:

            — É, você pode ter razão. Nem estou sendo cavalheiro.Vocês sim são garotas simpáticas... Mas é que eu não sou obrigado.

            — Olha, você está tentando me dizer que um daqueles rapazes invadiu sua privacidade, certo?

            — Certíssimo.

            — E você odiou?

            — Exatamente.           

            — Porque sua preferência sexual é mulher e não homem, certo?

            — É, é isso aí.

            — Então temos algo em comum. Sou casada com duas mulheres: Mali e Mila que estão à sua esquerda.

            Ele arregalou os olhos em direção às meninas, tendo dúvidas do que acabara de ouvir.

            Continuei:

            — A relação entre as três é extremamente delicada. Se uma relação a dois é complicada, imagina a três? E ainda mais homossexual?! E não sei lhe dizer quem é a mais ciumenta. AQUELE RAPAZ QUE EU DISSE ESTAR PAQUERANDO, É MERO PRETEXTO. Os homens, normalmente, não nos atraem.

            Eu continuava sem dar trégua:

            — Quando perguntou se podia sentar-se à nossa mesa, as três fizeram cara feia, mas você ignorou o fato. Nós educadamente demos-lhe atenção.

            O alemão se encolheu de tal maneira que, naquele momento, estava quase do meu tamanho. Eu, seriíssima, continuava:

            — Não queremos você em nossa mesa. Sua energia machista nos irritou ao extremo. Por favor, peço que se retire.

           Assustado e pasmado, o alemão retirou-se com sua bebida completamente atordoado. Acho que o convenci com meu irônico argumento.

            Minhas amigas não ouviram a conversa e não compreenderam o motivo pelo qual o homem atordoado, cabisbaixo, se retirara da mesa. Perguntaram-me o que acontecera. Contei-lhes toda a conversa. A expressão em suas faces foi semelhante a do gringo. Acharam que eu tinha sido radical, mas logo perceberam que o argumento tinha dado certo, dando, elas, gargalhadas após o fato relatado.

            Sinceramente eu gostaria que o alemão pudesse compreender sua estupidez.

            Desde onze anos de idade, mais ou menos, eu fora descolada pra inventar estórias absurdas e acreditava tanto nelas, era tão convicta do que criava que as pessoas acreditavam tranqüilamente. Notavam-se incoerências, mas eu me envolvia tanto que os ouvintes perdiam os parâmetros do real e do imaginário.

            Nossa mesa estava tranqüila. Lembrei-me, sem ter esquecido, que Alexandre estava sentado à minha frente, em sua mesa. O vi levantar-se e caminhar em direção ao Wirmo Carma (W.C.). Em sua trajetória, havia uma cadeira com uma garota sentada. Quando Alexandre por ela passou, a garota fez questão de virar o corpo inteiro para vê-lo passar.  Os olhares se cruzaram.

            Esse olhar que se cruzou e esse corpo que se retorceu, eram meus.

            Ele entrou no banheiro.           

            Pensei: “na volta, ele passará por mim, aí então, eu o convidarei para sentar-se ao meu lado. "Sim, Veep, você conseguirá”. Minhas amigas queriam ir embora. Eu  implorei para que elas ficassem mais um pouco, pois eu tinha um motivo justo para permanecer ali e elas sabiam qual era. Mila disse:       

  — Há três horas estamos aqui e nesse tempo toda você ficou estática. Talvez precise de mais três horas pra agir e não estamos dispostas a esperar cento e oitenta minutos. — Só mais quinze minutos...

            —Nããooo!! - as duas responderam.

            — Então, cinco...

            Alguém me interrompeu. Ouvi uma voz de veludo acariciar meus tímpanos e a voz disse:

            — Oi!

            Era Alexandre que voltara do Wirmo. Quando o foquei para ser recíproca com seu "oi",  ele disse:

            — Um momento...- e  retirou-se.

            Eu sabia que ele voltaria.

            As meninas me deram um beijo de despedida desejando-me boa sorte, retiraram-se e eu fiquei sozinha. Novamente, tremia.

            Um vento passou pelas minhas costas.

            — Demorei? - indagou Alexandre, já sentado ao meu lado.

            Antes que respondesse, ele prosseguiu:

            — Fui despedir dos meus amigos.

            Eu estava tensa e ansiosa.

            — Onde você mora?- perguntei.

            — Na Aclimação.

            — Ótimo! Podemos voltar juntos, pois é caminho da minha casa.

            Eu morava na Avenida Paulista e estávamos na Consolação com Paulista.

            Ele, aparentando gostar da idéia, concordou.

            Não sabia, ao certo, se eu estava com receio de ir sozinha pra casa - era tarde e eu não tinha dinheiro pra pagar um táxi - ou se talvez fosse o medo da hipótese de Alexandre ir embora, antes d’eu saciar minha vontade.

            Queria conhecê-lo um pouco mais e estava disposta a ficar o tempo necessário.

            Enquanto conversávamos, eu e Alexandre, percebi que as palavras nada diziam. Notei também que, quando nossos corpos se aproximavam, surgia uma energia tão louca, tão forte, a temperatura lembrava algo materno, uterino. Eu sabia que ambos sentiam o mesmo, pois nós juntos, gerávamos aquela atmosfera que não era intencional, não tinha energia sexual, acontecia naturalmente, talvez se usada com esse intuito, o da energia sexual, fosse "uau!", mas naquele momento não nos interessava. Eu estava começando a perceber sua insegurança, sua fragilidade e sua delicadeza. A cada segundo que passava, eu me envolvia mais e mais, me atirando num mar, com os olhos totalmente vendados.

            Alexandre insistia em brincar com sua idade. Só que dessa vez, dizia ter 16 anos. Fez questão de mostrar sua carteira de identidade. Quando li, o ano de nascimento era o de 1974 e estávamos em 1990. Então, ele tinha dezesseis anos. Pasmada, acreditei. Olhava sua face, procurando um adolescente e somente enxergava um rapaz com cara e rugas de 30 anos que tinha lindos olhos azuis. Voltei a mim e percebi que tinha visto a data demissão da carteira e não a data de nascimento. Ele tinha 30 anos.

            Não entendia o motivo insistente em querer me confundir com sua idade, pois para mim não era nenhum ponto de referência, não tinha valor algum, diante do que eu sentia. Estava quase chegando a conclusão que aquela forma de agir era algum trauma em sua vida. Confirmei minha idade. Ele QUIS VER MINHA IDENTIDADE. Mostrei-lhe. Confirmara meus 18 anos. Todavia eu era precoce. Senti-o se afastar momentaneamente, talvez pensasse na impossibilidade de se arriscar com uma garota da minha idade. Tentei aliviar-me, pensando que aquela pauta de sempre - a da idade - fosse um pretexto para desenrolar outro assunto e assim, quem sabe, falaríamos mais sobre nossas vidas, trocaríamos figurinhas e segredos de um pro outro. Talvez o segredo da vida de Alexandre estivesse em sua idade! É, talvez fosse isso mesmo!!

            Mudamos de assunto.

            Alexandre contara-me que trabalhava em São Paulo para sustentar a mãe doente, que morava no interior. Tinha duas irmãs. Não se dava muito bem com a mais velha, tinha problemas de incompatibilidade de gênio. Com a mais nova, de 19 anos, tinha mais problemas ainda, por causa do excesso de compatibilidade de gênio. Fora, ele, apaixonado por ela. Literalmente. A paixão fora correspondida... E consumada!

            Fingi não ter me chocado com ao ouvir aquilo e naturalmente perguntei-lhe se era passado. Ele respondeu-me que sim, que já havia superado essa paixão devastadora.   Tranqüilizei-me. Ele deveria ser mais normal atualmente.

            Achei aquele relato tão íntimo para ser dito a uma pessoa que ele conhecia a tão pouco tempo. Seria uma forma de me chocar, contando-me a amarga história? Amarga para mim, para ele o contrário. Mas, por quê? Queria provar que era suficientemente problemático? Irreverente? Moderno, talvez? Mas, por quê?

            Não falo sobre a minha intimidade com qualquer pessoa e principalmente se não a conheço. Normalmente é assim com qualquer pessoa que não está disposta a pôr tudo a perder ou a se expor. Prefiro contar como quebrei meus dentes da frente, numa brincadeira de infância com minha prima, por exemplo. Conclui que, assim, poderia ser com ele também. Mas não conseguia entender porque aquele assunto e naquele momento.

            Eu falava sobre mim, quando, Alexandre interrompeu:

            — Dê-me sua mão esquerda.

            — Pra quê?

            — Posso olhá-la?

            Antes de responder, pensei: “será que o que ele aprendeu com a cabeça de melão com peruca de nylon, ele aplicará comigo? Justamente comigo? Esse truque tem teias de aranha. Não, comigo não!!". Relaxei o corpo e desmoronei minha mão sobre a dele. Seus olhos pareciam penetrar nas minhas veias, como se pudessem enxergar meus ossos e as articulações.

            Um vento correra dentro de meu corpo. Começara pelos dedos da minha mão esquerda, subindo pelo braço até o pescoço, no pescoço esparramou-se pelo braço direito e o colo. Pelos seios. Estômago, barriga, quadris, escorregou pelo meu ventre, passou por minhas pernas até os pés. Minha respiração começou a ficar intensa.

            Ele ficara olhando minha mão durante cinco minutos, aproximadamente, devolvendo-a depois em seu lugar. Eu me sentia descabelada, naquele lugar público.   Tentei disfarçar meu estado.

            Perguntei:        

            — E aí? O que você viu?

            — Muitas coisas.

            Encarei-o, querendo saber mais detalhes “muita coisa” era bastante vago. Entendendo minha expressão de reticências, respondeu-me:

            — São fatos para serem observados e não comentados.

            — Quer dizer que eu não posso saber?

            — Fazendo a leitura da sua mão, pude lhe conhecer melhor.

            Fiquei calada. Era óbvio entender o que ele queria dizer. Fôra o truque da leitura em braile. Famoso golpe. Não me contentando, reclamei:

            — Eu lhe cedi minha mão e você não vai me dizer nada? Diga pelo menos, alguma coisa, senão vou cobrar os cinco minutos -brinquei- ou vou pensar que é um embuste!

            — Vi dois homens em sua vida -disse misterioso- e um amor forte que se foi. Esses dois homens que me refiro, estão atualmente em sua vida e/ou estão por vir. Um vai ser insignificante, mas lhe trará prazer. O outro vai fazer você sofrer, mas lhe ajudará no amadurecimento emocional.

            Sua seriedade era tão grande que ele parecia um perfeito quiromante.

            Respeitei-o, ficando calada alguns segundos, então, perguntou-me:

            — Qual a parte da palma da minha mão que você mais gosta?

            Olhei para sua mão e apontei a “anticoxa” do dedão.

            — O que você faria com ela? — perguntou-me.

            Pensei.

            Ele pediu para que eu mostrasse.

            A  minha mão.

            Então, apalpei a parte da sua, a que eu mais gostara, oscilando do toque sutil para o selvagem. Detive-me por alguns instantes e perguntei:

            — O que isso significa?

            — A parte da minha mão que você escolheu representa Vênus, que, por sua vez, representa a sensualidade. O que você fez, foi mostrar exatamente o que mais gosta em mim e o que faria com isso, ou seja, você gosta da minha sensualidade e tem intenções com ela.

            Percebi o que tinha feito. Estava totalmente exposta naquele momento. Docemente, ele  sorriu, percebendo o quão sem jeito eu estava.

            Saímos do Guetalla e fomos caminhando pela Avenida Paulista, esperando um táxi passar. Já estávamos abraçados.

            — Tenho que acordar às dez horas —falou.

            — Quer que eu lhe acorde às dez?

            — Você dorme em casa? — perguntou.

            — Você tem telefone? Eu poderia lhe telefonar.

  — Não. Não tenho telefone — bocejou graciosamente.                    

  — Tudo bem, então, eu durmo em sua casa.

            Ele sorriu. Continuamos calados até passar um táxi.

VI

  Aclimação. Eu já havia morado naquele bairro durante três anos... Simpatizava com ele. O carro parara, Alexandre pagara a corrida do táxi. Fizemos o trajeto calados. Descemos do carro.

           O prédio em que morava era bem antigo. Subimos até o quinto andar, pelas escadas, o elevador estava em manutenção. Entramos em seu apartamento.

           Havia uma sala com alguns móveis: uma mesa acompanhada de duas cadeiras. Almofadas esparramadas pelo chão. Os quadros faziam parte de uma sala de estar para formigas e baratas, pois ficavam três dedos acima do rodapé. Excêntrico. Estantes muito pequenas pareciam que tinham sido projetadas para um anão, como muitas outras coisas pela casa. Plantas faziam jogos de cores com os móveis e detalhes daquela simpática sala.

            Tentava relaxar com minúcias, mas estava muito tensa e retraída. Concluí: “Veep, você não está preparada para isto”.

            "Isto o quê?”.

            Alexandre serviu-me uma dose de vodka, pedindo licença para tomar um banho. Fingindo bebê-la, consenti. Eu tinha repulsa a vodka.

            Enquanto as águas do chuveiro deslizavam seu corpo, caminhei até a cozinha, jogando a bebida no ralo da pia.

            Voltei à sala.

            Peguei uma revista de história em quadrinhos e comecei a lê-la. Na realidade, meus olhos passavam pelos desenhos e balões. Meus pensamentos vagavam. Pensava: “dormiremos juntos, na mesma cama ou em quartos separados? Faremos sexo ou amor?”. Céus!! Não sabia se eu tinha direito de sentir prazer! Não sabia porque estava ali. Provavelmente, ele não pensasse em sexo...Talvez nem gostasse de fazê-lo. Talvez quisesse apenas, dividir a cama com um calor humano. Estava frio, notei que não havia aquecedor na casa dele. Exato. O calor humano deveria lhe interessar. Por um momento me senti vulgar. Nós criamos um clima que surgira com suas próprias vontades. Fechei a revista de história em quadrinhos.

            Caminhei até a janela e fiquei olhando à vista.

            Era chata.

            Existiam alguns prédios ao redor: feios e baixos.

            Áreas abandonadas, aterros.

            Não havia movimento na rua naquela madrugada de sábado.

            Entediante.

           Tentava, novamente, me acalmar, pensando em coisas fúteis. Nada adiantava. Pensava no que aconteceria quando Alexandre saísse do banho e como eu iria "proceder o caso".

            Aparentemente, eu era a pessoa mais calma de São Paulo. Saí da janela.

            Acomodei-me em algumas almofadas. Tirei uma lixa de unha da bolsa. Ridículo lixar as unhas naquele momento! Guardei-a de volta na bolsa.

            Alexandre ressurgiu com uma toalha enrolada em seu corpo. Seu tórax estava exposto. Sua pele era demasiada branca. Fiquei encantada. Voltei à infância, lembrando-me de contos infantis, como o da Branca de Neve.

             Então, perguntou-me:

            — Quer tomar um banho?

            — Não.

            — Quer mais vodka?

            — Não. Obrigada.

            — Quer acompanhar-me até o quarto?

            — Não.

  — Afinal, quer alguma coisa?              

  — Tem baralho? Podemos jogar uma partida de Buraco!

            — Não, não tenho baralho e não gosto de jogar cartas.

            — O que você quer fazer?

            — Deitar-me na cama e dormir

            — Ótimo! Pode ser. Estou com fome.

            — Quer comer algo?

            — Não... O que eu queria dizer é que também estou com sono e não com fome.

            — Ah é?

            — Acho que excedi na quantidade de chope. Meu corpo está mole. Repousar é uma boa idéia - finalizei.

            Houve silêncio por alguns minutos.

            — Acompanhe-me -falou.

            Levantei-me das almofadas e o acompanhei. Ele mostrara-me o resto do apartamento.

            Alexandre dividia o apartamento com uma atriz de teatro infantil e com uma estudante de História. Nenhuma das duas estavam. Havia três quartos: o primeiro, com uma cama de casal e uma penteadeira repleta de perfumes franceses e talcos; o segundo, a porta estava fechada, como se nada existisse dentro. Chegamos ao terceiro quarto: estreito, possuía um colchão de dois centímetros de espessura —seu forro estava bastante rasgado; vários livros dependurados numa estante, livros de misoginia, antropofagia e alguns de mitologia grega, como, “Alexandre, O Grande”, algumas roupas estavam dispostas em araras. Alexandre arrumara o colchão, forrando-o com um lençol lilás, colocara algumas almofadas ao lado do leito, para não ter perigo de “cairmos da cama”.

            — Você prefere lençol ou cobertor para se cobrir?

            — Lençol —respondi.

            Tirou a toalha do seu corpo.

            Deitou-se no colchão.

            Cobriu-se com o lençol.

            Eu continuara em pé vestida.

            — Você está bem?

            — Sim, claro!—respondi.

            Se alguém lesse meus pensamentos naquele momento, teria a certeza de que eu, nunca tinha transado, feito amor ou sexo. Mas eu sabia que nunca desejara alguém como o desejava, naquele estreito quarto. Algo além do seu sexo me interessava.

            Sentei-me no colchão —ele me observava— tirei meus sapatos e os ajeitei num canto do quarto. Tentei tirar o cinto e não consegui. Eu estava de costas e Alexandre flagrando o quão tímida estava, perguntou:

            — Quer que eu apague a luz?

            — Não. Não é preciso. Não gosto de escuridão.

            Ele ainda me observava, com seu corpo deitado. Sua cabeça apoiada na mão, sua mão apoiada no cotovelo, seu cotovelo apoiado no colchão e o colchão apoiado no chão.

            Cadência.

            Continuava com dificuldades para tirar o cinto, quando senti minha cintura ser abraçada. O garoto, que agora eu sabia o nome dele, tentava me ajudar. Sua respiração passara por meu pescoço —estremeci em mim— mas ele, logo voltara ao lugar de antes.

            Tentava tirar a calça —ajustada ao corpo— para facilitar, sentei-me no colchão. Não adiantando, levantei-me novamente, ficando de bunda ao moço. Desci com sutileza a calça, colocando-a em cima de uma cadeira. Ainda de pé, tirei os brincos, o colar. Tentava não deixar transparecer meu exacerbado nervosismo. Sentei-me no colchão.

            Ainda restavam no corpo uma blusa lilás e uma calcinha rosa. O par de meias verde continuava em meus pés. Tirei-as. Novamente, Alexandre viera por trás de mim e encostara seus lábios em minha nuca, meu pescoço. Virei-me e toquei seus lábios, esse encontro gerara o beijo mais indecifrável que eu já sentira, até então, na minha vida. Não vi o início e parecia não ter fim.

            Deitei-me sobre Alexandre, agarrando sua pele com intenção de jamais abandoná-la. Apertava-o contra mim. Beijava seu rosto, olhos, pescoço. Minhas mãos deslizavam em seus ombros, sua cintura. Tocava suas omoplatas que me pertenciam e o seu pênis também era meu, estava em minhas mãos, já possuía a alma de Alexandre completamente.

            Alexandre, com os dedos, tocava meu colo sem pressa de chegar, tocava nos meus seios, no meu ventre. Seu corpo estava sobre o meu. Enquanto ele me beijava a boca, seu longo cabelo se arrastava pela minha face. Era sensual, semelhante ao movimento dos cílios, ao piscar dos olhos que desliza no ar.

            Havia uma imagem carnal em minha frente, de pele branca e olhos de um azul profundo, a atmosfera tornava-se cada vez mais mágica. Ele beijava meus seios, acariciando meu cabelo, enquanto o seu, não tinha direção pra ir ou voltar. Eu o comprimia, mais e mais, ao meu corpo. A timidez e a tensão —que, antes, eram máscaras do meu desejo — dissolveram-se.

            Eu estava nua, completamente nua. Minha pele descolada da carne.

            Apenas um desejo incontrolável.

           Transamos durante toda a madrugada, O sol nasceu. Nós dois éramos, então, uma só pessoa.

            O olhar-mar estava morto.

            Eu estava viva.

            Desafogada

            Adormecemos.

VII

Naquela noite de inverno —eu estava num bar com alguns amigos, bebendo um Jack Daniel's — algumas estações tinham se passado desde o meu primeiro e único encontro com Alexandre. Obtive informações de que ele era misógino. Ninguém jamais entendera o motivo pelo qual ele teria ficado comigo. Nunca mais o vi, desde a noite que toquei sua alma. Pensava nele quando de repente percebo um moço muito bonito me olhando. O rapaz tinha corpo forte, sua pele era clara e o cabelo era tão escuro quanto curto...

 

FIM

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