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Nota

Nem Tudo que é Branco é Pó foi eleito um dos 10 melhores roteiros do workshop Cidade dos Homens/2003 (mini-série da Globo, inspirada em Cidade dos Homens, de Fernando Meirelles.

Sinopse

Plínio, pseudo grafiteiro e adolescente burguês da zona Sul do Rio, conhece Acerola e Laranjinha. Pensando que eles são traficantes, por morarem na favela, tenta usufruir da situação para conseguir cocaína de graça.

24' de duração

 

todos os textos e roteiros contidos neste site estão registrados na biblioteca nacional, plágio é crime e um mais um é igual a dois. não os utilize sem a prévia autorização e créditos devidos.

       NEM TUDO QUE É BRANCO É PÓ

                roteiro de Viviane Fuentes

 

 

BECO-EXT-DIA

Detalhe de um muro branco recém-pintado. Som de garrafa de vidro rolando no asfalto. Detalhe de um vidro de XAROPE BENTIL. Som de lata de spray sendo chacoalhado. PLÍNIO, garoto branco, 16 anos, estilo skatista vagabundo, veste uma camiseta com os dizeres Quem sou?, nas costas. Plínio tenta se equilibrar, tombando o corpo para a direita e para a esquerda e pára de chacoalhar o spray. Ele pára e observa o muro branco. FUSÃO PARA:

ANIMAÇÃO/ALUCINAÇÃO DE PLÍNIO

O muro branco, desfocado, aos poucos, atinge a textura de TINTA, de CORES CÍTRICAS, num movimento, em 3D, circular e escaldante, e volta ao normal. Em BG, BUZINAS e CARROS em movimento. FUSÃO PARA:

VOLTAMOS AO BECO

Plínio cambaleia, tenta se firmar ao chão. Num movimento amplo com o braço, picha um pequeno PONTO PRETO no muro.

CALÇADÃO/ZONA SUL-EXT-DIA

Uma ADOLESCENTE branca, bem vestida, sentada num banco, fuma um baseado. Laranjinha e Acerola passam por ela, e atravessam a avenida onde circulam carros de luxo.

LARANJINHA (preocupado, para Acerola)

Se a gente tá indo comprar bagulho pro chefe da bocada, a gente tá ajudando o tráfico?

ACEROLA

Se liga! O que nós vai comprar não é pro tráfico, é pro traficante!

Laranjinha não parece se convencer com a resposta. Pensativo, junto a Acerola, entra numa rua sem movimento. A dupla passa em frente à entrada de um beco.                           

ACEROLA (olhando para o beco)

...Rapá, o cara é doidão!

Acerola entra sorrateiro no beco, vê logo na entrada uma LATA DE TINTA BRANCA VAZIA e um ROLO DE TINTA USADO. Laranjinha o segue. Plínio, de costas, está a pichar. Acerola cutuca Laranjinha e aponta para o pichado: uma ESPIRAL tosca com um ponto no meio. Acerola ri baixinho. Plínio chacoalha a lata de spray. A lata voa para trás e cai no chão, aos pés de Laranjinha. Plínio nem percebe que a lata lhe escapou, e “picha” o muro.

LARANJINHA (baixinho, olhando para a lata de spray)

Devolve pro cara?

ACEROLA

É melhor nem tocar nisso, nego sempre se fode!

Laranjinha agacha e pega a lata de spray. LUZES LARANJAS e oscilantes invadem o beco, e chamam a atenção de Plínio que se vira. Na frente de sua camiseta o silk screen: Eu sou, mas quem não é? Surpreso, Plínio vê Laranjinha, agachado, imóvel, e Acerola, tenso, ao ver a VIATURA POLICIAL que pára na entrada do beco.

Dois policiais, brancos, 32/33 anos, saem da viatura, na maior pressão, calças bem justas, ajeitando o revólver na cintura: Um deles é PA, bem alto, sua voz é fina e caricata; o outro é PB, bem baixo, sua voz é grossa e caricata. Uma MÚSICA INCIDENTAL, no estilo das dos seriados policias DOS ANOS 70, toca. PA e PB adentram o beco.

PB

Paradinho todo mundo aí, mora!

PA tropeça na lata de tinta. Ouve-se a agulha riscar o disco e a música sumir. PB ajuda PA a levantar. Eles seguem.

PB

Você aí!

Acerola está duro, imóvel.

ACEROLA (nervoso)

Eu?

PA e PB se aproximam de Acerola, mas olham para Plínio.

PA (para Acerola)

Não, seu irmão de cor.

Plínio mexe nas orelhas, como se tentasse desentupi-la.

PLÍNIO

Eu?

PA

Você lá é negro?

PA e PB passam por Plínio, mas têm os olhos fixos no muro, e param diante dele. Pernas abertas, mãos na cintura, eles observam o pichado. ½ pausa.

PB (para PA)

Mas que diabos é isso?

PA se aproxima, se afasta do muro e coça a cabeça, tenta entender o pichado. PB faz o mesmo só que, enquanto PA vai para frente, PB vai para trás. As testas franzidas de PA e PB mostram que não entenderam o desenho pichado. Eles se olham.

PB

Vamos perguntar pro artista...

PA

...que está com o objeto do crime na mão!

Vemos Laranjinha, lata de spray na mão, de cócoras, tentando não perder o equilíbrio. PB com o DEDO INDICADOR "pede" que Laranjinha se aproxime. Laranjinha se levanta e vai até PA e PB, Acerola o segue. Em fila indiana, Acerola, PA, Laranjinha e PB, observam o pichado. Plínio se aproxima deles, viajandão, parece dormir de olhos abertos.

PA (para Laranjinha)

Pra que se arriscar com uma merda destas?

Laranjinha abaixa a cabeça.

PB

Se a sua vida não faz sentido...

PA

...a gente não é obrigado!

Laranjinha curva o pescoço. 

PB

Tenho dó da tinta que saiu da lata pra nada!

Laranjinha abaixa os ombros

PA

Fico zonzo só de olhar!

Laranjinha deixa cair a lata de spray no chão. O som desperta Plínio.

PLÍNIO (para PA e PB)

Espera aí!

PA olhar para as mãos de Plínio. DETALHE das mãos de Plínio com machas de tinta.

PA (cutuca PB, enojado)

Que nojo! Quanto tempo o garoto...

PB

...não toma banho?!

PLÍNIO (aponta Laranjinha)

...O que este garoto negro, pobre e fodido fez...

ACEROLA (p. da vida)

Qualé, seu maluco?

PLÍNIO

...Foi expressar o que está em seu inconsciente!

PA (irônico)

Ar...

PB (irônico)

...ran. (MT) E daí?

PLÍNIO

Esse grafite...

Laranjinha ergue a cabeça, ouve Plínio com atenção.

PB

...Cidadão! Isso está longe de ser um GRAFITE!(MT, para PA) Já está quase na hora do nosso almoço.

PA

Eu também estou com fome.

PLÍNIO (enfático)

 ...Esse artista deveria estar ganhando muita grana, com sua arte, com seu talento...

Laranjinha estufa o peito, envaidecido.

PLÍNIO (filosófico, apontando o pichado)

...Aqui está a opressão, uma ida sem volta...

ACEROLA (ri, baixinho, cutuca Laranjinha)

O cara é doidão mesmo!

LARANJINHA

Por quê? (baixinho, bravo) Você acha que eu não tenho talento?

ACEROLA

Você pirou? Nem foi você que pichou essa porra?!

Ouve-se uma VOZ FEMININA que vem do radio escuta policial. PA e PB olham para a viatura.

VOZ FEMININA

“Viatura 127! Respondam! Emergência!”

A música incidental, de seriado policial dos anos 70, volta a tocar. PA e PB arrumam seus distintivos, ajeitam os zíperes de suas calças, e correm em direção à viatura. PA, atrás de PB, escorrega no rolo de tinta. A música se distorce, e some. PB entra na viatura, fala na escuta, e sai, cantando pneu. PA se levanta, bate a mão na calça, limpando-a. A viatura volta. PA entra no carro e fecha a porta. A viatura sai.

Acerola, Plínio, e Laranjinha estão parados, boquiabertos, a olhar para a entrada do beco. Ouve-se o pneu cantar, já um pouco distante. Acerola reage.

ACEROLA (para Plínio)

Ô, filolsofo! (bravo) Tu ia deixar meu amigo levar a SUA culpa?  

LARANJINHA (cabisbaixo, para si)

Já tava até acreditando...

PLÍNIO

Eu livrei a de vocês, e é assim que me agradecem? (MT) De onde vocês são? (MT) Pra onde vocês vão?

ACEROLA (cantado, irritado)

Nós somos da favela. Lá, já temos bastante problema. Pra longe de tu é o lema!!

PLÍNIO

Não! Vocês têm a solução! (para si) Drugs!

ÔNIBUS-INT-DIA 

Acerola, Laranjinha estão na parte da frente do ônibus, parcialmente lotado. Plínio está na catraca.

LARANJINHA (bravo)

Como é que tu botô a gente nessa robada?

ACEROLA

Ele tem Play Station!!!

LARANJINHA (furioso)

A gente vai se estrepar com Madrugadão!

ACEROLA

...Relaxa, o cara vai pagar a passagem pra gente!

Plínio conversa com o cobrador e pula a catraca.

LARANJINHA (para Acerola, sarcástico)

Ah, é, é?

PONTO DE ÔNIBUS/ZONA SUL-EXT-DIA

Acerola e Laranjinha descem correndo, pela porta da frente do ônibus, que mal parou e já parte.

MOTORISTA

Seus vagabundos!

ACEROLA (para o motorista)

Vai se fodê!

Acerola e Laranjinha se aproximam de Plínio, na calçada.

LARANJINHA (p.da vida)

Se tu nem tem dinheiro pro ônibus, como é que tem Play Station?

INTERVALO

SALA DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA

Acerola olha a piscina, de água cristalina, embasbacado, através da porta de vidro, na sacada.

ACEROLA

Uau!

Plínio chaveia a porta. Laranjinha nota TAÇAS DE BEBIDA SUJAS, jogadas pelo chão. A MÃE de Plínio, 45 anos, vestida com robe de seda, rímel borrado nos olhos e cabelo despenteado, atravessa a sala. Ela cambaleia e fuça as GARRAFAS VAZIAS no BAR. Pega algumas taças do chão e as arremessa contra a parede, sussurrando palavras incompreensíveis, e sai. Plínio se aproxima de Acerola. Eles olham para a piscina.

PLÍNIO

Gostou? Foi limpa ontem!

ACEROLA (excitado)

Posso cair na piscina? De cuecão mesmo?

PLÍNIO

Fica avonts!

LARANJINHA

E o seu pai? Cadê ele?

PLÍNIO

Meu pai tem centenas de casas, quatro famílias, cortou minha mesada, e não mora com ninguém!

LARANJINHA (finge entender)

Ah!

PLÍNIO

Mas e aí? Você são trafica? Ou só aviãozinho?

LARANJINHA

Não é porque a gente mora na favela, que tamo metido com o tráfico!

PLÍNIO

Que pena...

Acerola repreende Laranjinha, com o olhar.

ACEROLA (bancando o fodão, para Plínio)

A gente tem uns contato...Somos dos grandes!

Laranjinha observa um ALCE DOURADO, com uma TOALHA DE BANHO, pendurada no corno. Acerola abre a porta da sacada. Plínio tecla, qualquer nota, no PIANO DE CAUDA BRANCO.

PLÍNIO (pensativo)

...Acerola e Laranjinha...(sarrista) Isso é nome de mané!

ACEROLA

Lá no morro, quem tem nome de fruta, é quem manda, tá ligado?

Plínio se joga no sofá.

PLÍNIO (malicioso)

Se são trafica, então têm como me arranjar pó, não têm?

ACEROLA

Claro! (½ pausa). Laranjinha é o patrão!

Laranjinha, surpreso, se vira para Acerola.

PLÍNIO

Troco o Play Station por farinha. Que tal?

Acerola tira a roupa, fica só de cueca e pula na piscina.

ACEROLA (feliz)

Fechado!

PLÍNIO (para Acerola)

Quer um refri, brother?

ACEROLA

Manero!

LARANJINHA (nervoso)

Eu pego o refri. Onde é a cozinha?

COZINHA DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA

Laranjinha olha o que tem dentro da geladeira, quase vazia. Ele vê um pedaço de QUEIJO GORGONZOLA, o pega, o cheira, e faz careta.

LARANJINHA

Eca! Tá podre!

Laranjinha põe o queijo de volta, e vê um POTE de CAVIAR aberto. Ele pega, com os dedos, um pouco do caviar.

LARANJINHA (cheirando os dedos, enojado)

Eles comem cocô de peixe! Que nojo!

Laranjinha limpa os dedos na bermuda, pega um REFRIGERANTE EM LATA, no fundo da geladeira, e a fecha.

LARANJINHA (OFF)

     ...Entra de cueca na piscina o mané e me deixa com o rojão na mão! Agora EU é que  tenho que me vira!

SALA DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA

Plínio dança, encarnando a letra da música Corpo de Lama, de Chico Science que toca. Da sacada, Acerola entra, molhado, pega a toalha no corno do alce e se enxuga. 

ACEROLA (tossindo)

Que gosto de merda tem essa água!

Plínio vai até a ESTANTE e desliga o SOM.

PLÍNIO

É cloro! Vocês não usam cloro na favela?

Acerola veste a camiseta. Plínio se joga no sofá, cruza os braços, suas pernas chacoalham sem parar. Acerola senta no sofá e o imita. Laranjinha chega, joga o refrigerante para Acerola e tira algo do bolso da bermuda.

PLÍNIO (excitado)

E ai, cadê?

Laranjinha joga UMA PETECA de cocaína para Plínio. Acerola arregala os olhos, surpreso com a peteca.

PLÍNIO (abrindo a peteca)

Show!!

Plínio vai até o piano de cauda. Acerola o acompanha com o olhar, dá um gole do refrigerante e se aproxima de Laranjinha.

ACEROLA (curioso)

O cara tinha e nem sabia?

FLASH BACK/ COZINHA DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA

Laranjinha arranca um pedaço de plástico do saco de uma lixeira, o som do rasgo é bem intenso.

VOLTAMOS À SALA

Uma carreira, larga e comprida, está esticada, de maneira grosseira, em cima do piano.

FLASH BACK/COZINHA DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA

Detalhe da mão de Laranjinha que, de uma colher, despeja “pó branco” no pedaço de plástico. Laranjinha fecha o plástico, dando um nó e o chacoalha. Som de moedas chacoalhadas.

VOLTAMOS À SALA

Plínio em frente ao piano fecha e guarda a peteca no bolso da bermuda.

PLÍNIO

Alguém tem nota?

Acerola tira de sua bermuda uma nota de dez reais e dá para Plínio.

ACEROLA

Toma aí!

LARANJINHA (repreendendo Acerola)

Tu pirô?! A grana nem é nossa!! Como é que vamu comprar o rádio do Madrugadão?

ACEROLA

Relaxa, mermão! O cara devolve depois.

Ouvimos o cafungar longo de Plínio.

LARANJINHA(perdendo a paciência)

Ó, se tu quiser, tu se ferra sozinho, porque eu já fui!

PLÍNIO

Nossa!! É da boa!! Arde até as bolas!

ACEROLA (malicioso)

Fala logo, tu robô de quem esse pó?

FLASH BACK/COZINHA DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA

Na mão de Laranjinha, uma “PETECA” perfeita de cocaína. Ao lado dela, na mesa, um pote onde está escrito SAL. Neste momento, reconhecemos a cozinha de Plínio. Som de caixa registradora.

VOLTAMOS À SALA 

Plínio, alucinado, coça o nariz, começa a pular, a fazer alongamento com os braços, desordenadamente.

PLÍNIO

Nooosa! Maluco, tô ligadão!

Acerola tem os olhos arregalados para Laranjinha.

LARANJINHA(irônico, para Acerola)

Nem tudo que é branco é pó!

PLÍNIO (para Acerola, elétrico)

O Play Station e minhas latas de sprays são de vocês, é só arranjar mais dessa cocaine!

Laranjinha sai, rumo à porta.

ACEROLA (para Plínio)

Sério? Belê, então!

Laranjinha destranca a porta.

ACEROLA (aflito)

Deixa de ser estraga prazeres, Laranjinha!

PLÍNIO (escorrendo o nariz)

Preciso andar, falar!  Tô doidão! Vou pegar os bagulhos, e a gente vai nessa. Me espera!

Plínio sai. CLOSE na nota de dez reais, em cima do piano.

CAMELÔS-EXTERNA-DIA

BARRACAS DE CAMÊLOS estão armadas nas calçadas. VENDEDORES AMBULANTES anunciam seus produtos. CLIENTES compram, pegam e levam as mercadorias. Laranjinha carrega uma SACOLA. Acerola, orgulhoso, carrega uma CAIXA, e abraça Plínio.

LARANJINHA (para Plínio)

Passa a nota de dez!

PLÍNIO

Que nota?

Laranjinha olha para Plínio, ameaçador.

PLÍNIO (mexe nos bolsos)

 Não está comigo. Juro!

Laranjinha, irritado, vai até o CAMELÔ que vende eletro-etrônicos, tira da sacola uma lata de spray, a mostra para o camelô, e aponta um rádio, sugere troca de mercadorias. O camelô balança a cabeça negativamente. Laranjinha fala algo, ele sorri, e faz sinal positivo. Laranjinha volta.

LARANJINHA (para Acerola)

Dá o Play Station!

ACEROLA (agarra com força a caixa)

Ah, não! Nem fu!

LARANJINHA (p.da vida)

...Tu tem outra solução?

½ pausa. Plínio parece pensar, coça a cabeça, e dá um pulo.

PLÍNIO (empolgado)

Tem duas soluções.

ACEROLA (eufórico)

Qual?

PLÍNIO

A primeira. (1/2 pausa) E a segunda.

ENTRADA DO MORRO-EXT-DIA

Plínio masca um palito de dente e carrega a CAIXA DO RÁDIO. Acerola dá a caixa do Play Station para Laranjinha. PESSOAS DA COMUNIDADE descem, outras sobem o morro, todas olham atravessado para Plínio. Percebemos, pela primeira vez, um olhar diferente, carinhoso, de Laranjinha sobre Plínio.

PLÍNIO (empolgado)

Vou ser o único branquinho, dos meus amigos, que vai entrar na moral nas favelas.

ACEROLA (para Plínio)

Tu já provou que pode ser malandro. Conseguiu na lábia, sem precisar de tostão, o rádim de pilha.

LARANJINHA (irônico)

Apesar de ter sido a TERCEIRA solução.

ACEROLA (para Plínio)

Mas agora, a parada é o seguinte:

PLÍNIO

Quero chegar na bandidagem, na maior pressão!

ACEROLA

Tu num arreda o pé daqui! Tem uma entidade acima de mim! Vô te aprender a ser bandido, tá ligado?

PLÍNIO

 Qualé? Vou subir com vocês!

LARANJINHA (para Plínio)

 Eu fico com você, na hora certa a gente sobe.

Acerola sai.

PLÍNIO

Como é que a gente vai saber QUANDO é a hora certa?

COZINHA DO BARRACO DE ACEROLA-INT-DIA

Mirta passa esmalte na unha, sentada à mesa. Acerola entra.

MIRTA

 Onde é que tu se meteu? Madrugadão tá te procurando num é de hoje!

ACEROLA (cuidadoso)

...Sabe aquele teu amigo?

MIRTA (desdenhosa)

Qual deles, Acerola?

ACEROLA

Aquele.

MIRTA

Dá pra falar a minha língua?

Mirta limpa com palito de dente a unha.

ACEROLA

...O Reynaldão!

Mirta machuca o esmalte da unha, com o palito.

MIRTA (olha a unha borrada)

Droga! Olha o que tu me fez fazer! (MT) Em que confusão tu tá metido?

ACEROLA

É só dessa vez, prometo. (fingindo desespero)

 ...É caso de vida ou morte!

Mirta fecha o esmalte.

MIRTA (bem tranqüila)

Se você arranjou problema, agora ache a solução!

INTERVALO

BOCADA DO REYNALDÃO/MORRO-EXT-DIA

No final da escadaria, TAL, branquelo e ruivo, e QUAL, negro azul, ambos de vinte anos, mal encarados e armados com metralhadoras, fazem vigia na porta da bocada. Acerola sobe o último degrau, ofegante, coça a cabeça, nervoso, tenta parecer seguro.

ACEROLA

 Dá pra descolar um papelote?!

QUAL

Desde quando tu é vapor?

TAL

Reynaldão tá atendendo cliente fora! (desconfiado)

Tu tá de cagueta, é?

ACEROLA

Não, não é nada disso... É pra impressionar uma mina!

TAL

Que mina? (gargalha) Tu é mó cabaço!!

QUAL (desconfiado)

...Cadê a bufunfa?

ACEROLA

Eu não posso botar na conta?

TAL

Rapa, tu tá pensando que aqui é mercearia?!

Qual pisca para Tal que sorri para ele. Tal dá um passo para frente e empurra Acerola com o cano da metralhadora.

TAL

A mercearia fica lá embaixo, palhaço!

Acerola perde o equilíbrio e rola escada abaixo, até:

LARGO/MORRO-EXT-DIA

Caído no chão, Acerola ergue a cabeça e vê, debaixo pra cima, Madrugadão, a sorrir diabólico, acompanhado de GAGUINHO, gago, e CAOLHO, caolho, ambos negros, de 18 anos. Acerola, tremendo de medo, se levanta, limpa a poeira da roupa, sem coragem de encarar Madrugadão. Gaguinho levanta o queixo dele.

GAGUINHO (gaguejando)

...Cadê o raudinho que tu mais Laranjinha ficô de trazer aqui, até o mei dia.

MADRUGADÃO (cínico)

Vou adivinhar: Tu não comprô, num colocô a pilha, mas gastô a grana!

ACEROLA

Não!! Eu comprei o rádio, (gagueja) mas você não vai acreditar!

Próximo dali Plínio surge, a sorrir, imponente, cabelo ao vento.

PLÍNIO (para si)

Essa é a minha hora, a hora certa!

MADRUGADÃO (bravo)

Onde foi pará o rádinho? (zomba) Dentro da sua “aceroula”, Acerola?

RISADAS de Gaguinho e Caolho.

O sorriso de Plínio fecha, ele olha para o lado e sai. Imponente, chega junto a:

Acerola que, ao ver Plínio, fica mais nervoso, percebemos que ele começa a suar.

PLÍNIO

Belê, Acerola? (valente, para Madrugadão) Perdeu alguma coisa?

Madrugadão arranca a caixa do rádio da mão de Plínio.

MADRUGADÃO

Perdi sim, mas já achei.

Plínio toma o rádio de Madrugadão. Acerola faz um sinal para Plínio ficar quieto.

PLÍNIO (para Madrugadão, mostrando o rádio)

Isto é do meu amigo Acerola, trafica da pesada, tá ligado?

Madrugadão cutuca Caolho e Gaguinho. Eles riem.

MADRUGADÃO

Olha a do cara!

Plínio imita a postura clichê de bandido.

MADRUGADÃO

Acerola? Traficante? (pára de rir) E tu, branquinha, como se chama, Mexerica?

PLÍNIO (pensa alto, vaidoso)

...Nome de fodão! (para Madrugadão) É isso aí, respeito!

Madrugadão, Caolho e Gaguinho se olham, cúmplices, e depois encaram Acerola e Plínio.

Próximo do largo, Laranjinha, aflito, olha para todos os lados. 

LARANJINHA

Caralho! Onde o cara se meteu?

Plínio vê Laranjinha e grita.

PLÍNIO

Ai, Laranjinha, chega aí!

Laranjinha se vira e vê Plínio peitando Caolho.

PLÍNIO (para Caolho)

Agora somos 3 contra 3, e aí, caolho, vai encarar?

CAOLHO (para Gaguinho, sério)

Cumé que ele sabe meu nome?

Laranjinha chega, cabisbaixo. Gaguinho pega a sacola da mão dele, e despeja as latas de spray no chão. Caolho pega a caixa do Play Station. Madrugadão olha a caixa com interesse.

MADRUGADÃO (para Caolho)

Confisca!

Madrugadão estrala o dedo e, junto com Caolho e Gaguinho, eles sacam a arma, escondida, de trás de seus calções. Caolho põe a arma na cabeça de Laranjinha; Gaguinho, na de Acerola; Madrugadão, na de Plínio. Laranjinha fecha os olhos. Plínio ri despreocupado. Acerola quase chora. O eco de um tiro congela a expressão preocupada e atenta de Madrugadão.

WALKY TALKY DE MADRUGADÃO (voz masculina OVER)

Invasão dos homi na bocada! Vai ser pega pra capá!

Madrugadão, Caolho e Gaguinho, nervosos, apontam suas armas em direções opostas, e saem correndo. Caolho abandona a caixa de Play Station no trajeto. MORADORES correm e se fecham dentro de seus barracos.

VÃO DO BARRACO-EXT-DIA

Laranjinha empurra Plínio para o fundo e se junta à Acerola, na entrada do vão. Apreensivos, eles olham o movimento externo. Ouve-se TRÊS TIROS SEGUIDOS, distantes. Laranjinha olha para o fundo do vão, Plínio sumiu. Acerola cutuca Laranjinha e aponta para fora. Ouve-se um TIROTEIO DISTANTE, começar tímido.

LARGO/MORRO-EXT-DIA

O TIROTEIO RESSOA. Plínio tem uma peteca aberta na mão. Ele enfia todo o “pó” no nariz, joga fora o plástico, e abre os braços como se fosse Cristo Redentor, girando, lentamente.

PLÍNIO (grita)

Podem vir! Meu corpo é a prova de bala!

RUAS DO MORRO-EXT-DIA

TRAFICANTES, negros e jovens, armados, correm pelas ruelas, e trocam tiros com POLICIAIS. A imagem é vertiginosa, como se um camera-man acompanhasse a ação, correndo. Uma caixa d’água é furada por uma bala. A água começa a escorrer.

BOCADA DO REYNALDÃO/MORRO-EXT-DIA

Tal e o Qual atiram, sem parar, para baixo das escadarias contra TRÊS POLICIAIS, que se esquivam das balas, e sobem as escadarias. Tal e Qual entram num barraco, e fecham a porta. Um policial, arma apontada, empurra a porta com o pé.

LARGO-EXT-DIA

Plínio vê um carrinho de cacarecos abandonado, cheio de papelão. Ele o puxa para o meio do largo, e fica atrás dele, fingindo portar uma espingarda. O tiroteio, do alto do morro, começa a ficar intenso.

MONTAGEM PARALELA

VILAREJO/PLAYMOBIL

(Apenas Plínio, neste delírio, tem corpo humano do tamanho dos bonecos de Playmobil. O cenário, apaches, cavalos, e tudo o mais são peças de Playmobil)

Plínio, vestido de cowboy, está atrás de uma carroça abandonada, no meio da rua deserta. Ele porta uma espingarda. Seu olhar é tenso. Ouvimos o UIVO DE COYOTE, clichê de filme western. FUSÃO PARA:

VOLTAMOS PARA O LARGO

Plínio olha, tenso, para cima. OUVE-SE um HELICÓPTERO sobrevoar o morro. A POEIRA levanta. Plínio rola na terra. FUSÃO PARA:

VOLTAMOS PARA O VILAREJO/PLAYMOBIL

Plínio, espingarda na mão, rola na terra e monta num cavalo. A poeira levanta. Ouve-se GRITOS APACHES de guerra e CAVALOS GALOPANTES. MÚSICA WESTERN dinâmica em BG. FUSÃO PARA:

VOLTAMOS PARA O LARGO

Plínio galopa em cima do carrinho. Balas de fuzis perfuram os barracos ao redor do largo. FUSÃO PARA:

FLORESTA/PLAYMOBIL

Plínio, em pé no cavalo, ajeita o chapéu, gira a cabeça para trás, em direção aos APACHES que cavalgam atrás dele, e atira. Vemos um TRONCO GROSSO, numa árvore, tombado, à frente de Plínio. Música western, em BG, sobe. FUSÃO PARA:

VOLTAMOS PARA O LARGO

Plínio está em cima do carrinho, na mesma posição da cena anterior. Corpo pra frente, cabeça pra trás. Ele finge atirar. Ouvimos um único TIRO VIBRAR.

ANIMAÇÃO

Uma bala gira, em câmera lenta, e segue sua trajetória.

VOLTAMOS PARA FLORESTA/PLAYMOBIL

No auge da música western, do som de cavalos galopantes, e gritos de guerra apaches, Plínio, em pé no cavalo, desprevenido, vira-se, e choca-se com o tronco. Ouve-se um ESTRONDO. FUSÃO PARA:

VOLTAMOS PARA O LARGO

Plínio cai do carrinho, em câmera lenta, e bate a cabeça no chão. Ouve-se o eco final de um TIRO. SILÊNCIO.

FINAL DA MONTAGEM PARALELA

QUARTO DA MÃE DE PLÍNIO-INT-DIA

A mãe de Plínio dorme, largada, de robe, na cama. Ao seu redor vários FRASCOS DE COMPRIMIDOS. Calmantes e Ansiolíticos.

NARRADORA JORNALÍSTICA (OFF)

A polícia invadiu hoje o Morro de Santa Marta. Um tiroteio assolou a comunidade: um estudante da zona sul foi baleado. (...)

A TELEVISÃO está ligada em frente à cama. Nela, a seguinte imagem:

LARGO/MORRO-EXT-DIA

Policiais carregam vários tipos de armas e pacotes de cocaína. Atravessam o largo e descem o morro. Conduzem adolescentes algemados, uns de cabeça baixa, outros com os rostos encobertos por camisetas. Entre eles Tal e Qual. No canto da imagem, vemos as pernas estiradas de Plínio e os pés de Laranjinha a se aproximar do corpo de Plínio.

NARRADORA JORNALÍSTICA (OFF)

O motivo principal da batida policial não foi bem sucedido. Reynaldão, fornecedor de armas e drogas para a facção criminosa DAD, não foi encontrado. FADE IN NO ÁUDIO

EFEITO DE TRANSIÇÃO

LARGO/MORRO-EXT-DIA

Laranjinha se aproxima lentamente do corpo de Plínio estirado no chão. Os MORADORES, aos poucos, saem de seus barracos, olham com tristeza os furos de bala nos barracos. Laranjinha pára, chocado, diante do corpo de Plínio.

LARANJINHA (indignado)

O cara nem era pra estar aqui!

Acerola corre em direção a caixa do Play Station, a alguns metros dali. Ao caixa está perfurada de balas. Acerola choraminga, ao ver os furos nela. Laranjinha recolhe, lentamente, as latas, intactas, de spray, e as coloca na sacola.

LARANJINHA (triste, para Plínio)

Estúpido! Tinha tudo e desperdiçou!

ACEROLA (sacode a caixa, trágico)

Olha o que virou?!

LARANJINHA (para Acerola, bravo)

Tu nem tem televisão! Se liga!!

Plínio abre os olhos. Laranjinha dá um pulo de susto. Plínio passa a mão no braço, num pequeno arranhão de bala, com um pouco de sangue. Plínio se levanta, lentamente. Olha o redor. Vê sangue esparramado pelo chão, os barracos com furos de bala, crianças CHORAM dentro deles, a água que escorre na rua, virando lamaçal. Seus olhos expressivos, de choque e tristeza.

Acerola se vira, vê Plínio, e faz o sinal da cruz, pensa ver uma assombração. Laranjinha sorri, tímido e feliz, para Plínio.

PLÍNIO (para Laranjinha)

...Foi mal...Eu não tinha noção...

Acerola se aproxima, cabeça baixa, de Plínio e Laranjinha.

PLÍNIO

... Eu só não queria passar mais uma tarde sozinho...Foi mal, eu não tinha noção.

LARANJINHA (para Plínio)

Tá na hora de ir pra casa.

Plínio abraça Laranjinha com força. Acerola, envergonhado, dá um tapa, carinhoso, nas costas de Plínio.

ACEROLA (para Plínio)

Sabe o caminho de volta?

Plínio não responde, apenas balança a cabeça afirmativamente e sai. Plínio caminha e, aos poucos, se distancia de Acerola e Laranjinha. O SOL começa a se pôr.

ACEROLA

Depois de hoje é amanhã, certo?! (MT) Vô pintá um muro de branco e tu faz um desenho bem bonito...Em homenagem ao Madrugadão!

LARANJINHA

Manero. (metido) Com meu talento, talvez a gente se safa da punição, e ainda ganha uma grana extra!

Plínio, de costas, desaparece num horizonte alaranjado. O sol se põe completamente.

PLÍNIO

“Nem tudo que é branco é pó”. (solta, devagar, um sorriso). Essa foi boa!

 

FIM

 
 
 

                                              

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