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 NUMA TANDEM: 650 KM, 9 DIAS, 1 VIAGEM 

A

De Ouro Preto  a Ouro branco

Viviane Fuentes e Mathieu Gillot

 

Igreja de Ouro Preto: cartão postal da cidade

 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem

 

"FÉRIAS" EM OURO PRETO – Diário de 12/08/05, sexta-feira 

Bagagens acopladas na garupa, montamos a tandem e pedalamos ladeira abaixo - o vento soprava no rosto assoviando “férias”. A fim de descobrir um hotel para pernoitarmos, faríamos um breve passeio sobre rodas pela antiga Vila Rica.

Rumo ao centro histórico, encontramos alguns alunos, todos muito bem uniformizados, de 10 a 12 anos, acompanhados por seus professores, em fila organizada - a maneira deles, é claro - na estreita calçada. Quando nos viram descer trotando pelos paralelepípedos, um deles cutucou o amigo ao lado e gritou:

         — Olha lá, cara, que maluco!! – apontando para nós.

Foi o suficiente para a algazarra começar, os mais de vinte alunos gritavam com energia pueril, nos abanando a mão. Enquanto riam, gritavam frases do tipo “hei, me leva com vocês!” “olha, não é o super-man, mas são dois numa bicicleta!”  “onde cabem dois, cabem mais, dá carona?” e se divertiam com as piadinhas que arremessavam. Sorrimos, buzinamos e, enquanto a bicicleta pegava velocidade, eles desapareceram.

A tandem chama muito a atenção, principalmente à atenção das crianças - os olhos delas brilham e em seguida abrem o sorriso quando a vêem passar - creio que vislumbram nesse tipo de bicicleta, a possibilidade de pedalar com o pai e com segurança. Amizade e companheirismo. Será? Se for isso, é o mesmo tipo de sentimento que compartilho com Mathieu.

Chegando ao centro de Ouro Preto, outras pessoas gritavam, a fim de chamar nossa atenção:

         — Pousada? Pousada aqui! – quase nos pegaram no meio da rua e em movimento.

Mal havíamos chegados, nós turistas, e já nos disputavam. Nem pedalando você foge desse tipo de abordagem?! Ignoramos e seguimos o passeio. Deslizando por ladeiras sinuosas, avistamos dos morros os próprios morros sobre a vila rococó. Visitamos uma pousada mais afastada da muvuca, charmosa e rústica, mas os cômodos tinham cheiro de estrume de cavalo e mofo. Não nos convencemos.

Agora subíamos as ladeiras que, antes, havíamos descido, porque tudo que sobe, desce, e confesso nunca ter pedalado algo tão escarpado (houve uma vez, na Pedra Marcela, perto de Cunha, em SP, mas é outro caso, não consegui ir até o fim... Que vexame!

Certamente sem as coxas de Mathieu eu não subiria, e não tenho vergonha de assumir – pensei no que li num dos diários, acho que o do Olinto, que a pior parte do trajeto em questão de altitude era justamente o trecho que faríamos no dia seguinte - e eu penando em algumas ladeirinhas de Ouro Preto!

Que Mathieu não ouça meus pensamentos. O sorriso dele era inseparável dos lábios, cheguei a pensar que teria cãibra na bochecha. Mas sim, no dia seguinte, encararíamos a Serra de Itacolomi, 1325m de altitude e a Serra de Ouro Branco, 1400m de altitude. Mal sabia que, às vezes, nem tudo que sobe, desce.

Por fim, decidimos nos hospedar num hotel ao lado da rodoviária. Levantaríamos cedo para seguir viagem a Conselheiro Lafaiete e achamos apropriado ficar próximos à saída da cidade.

Descarregamos tudo. Tomamos uma ducha, trocamos de roupa, colocamos chinelos. Peguei a filmadora, Mathieu a câmera fotográfica e fomos caminhar pela cidade. O tempo abriu e o sol despontou.

Fotografamos e filmamos a cidade barroca, depois de horas caminhando paramos num simpático restaurante onde músicos-intelectuais ouro-pretanos filosofavam sobre partituras. Almoçamos salmão com canela, depois fomos até o centro comprar mantimentos para a viagem.

Final da tarde, assim que chegamos ao hotel caiu um enorme pé d'água. Barulhento, chuva de granizo, pedaços de gelo tamanho-unha - voltou-me o frio na barriga. Fizemos uma sesta. Preparamos nossas malas.

Voltamos à vila, comemos pão de queijo e tomamos chocolate quente, tudo estava delicioso. No hotel, capotamos de sono.

1º DIA DE PEDAL - De Ouro Preto a Ouro Branco Diário de 13/08/05, sábado

Despertamos às seis horas da manhã, tomamos banho e um café da manhã reforçado, frutas, pão de queijo, café, pão, suco. Sem perder tempo, todavia sem stress, carregamos as bagagens.

No estacionamento do hotel, Mathieu amarrou firmes os alforjes na garupa da tandem, eu me encarreguei de abastecer de água as caraminholas. Calados, como num ritual, tínhamos a euforia mansa dentro de nós, os olhares se cruzavam e sabíamos exatamente o que cada um deveria fazer. Gastamos uma hora para preparar tudo.

Trilharíamos o Caminho Velho do Ouro, caminho que fora inaugurado por Fernão Dias Paes, no século XVII por suas mirabolantes expedições. Na época, as travessias costumavam durar até noventa e cinco dias, contando com travessias marítimas em Santos e Rio de Janeiro.

Nobres da corte a cavalos, burros carregados de mercadorias, escravos andando e, é claro, muambeiros descobrindo atalhos para sonegar impostos à Coroa – o caminho teve tráfego até o século XIX.

Começa o pedal rumo a Conselheiro Lafaiete, 60 km. Oito horas da manhã, demos a partida. Mathieu se guiaria pelo diário do José Maurício de Barros. Tentaríamos fazer a mesma trilha com dicas marcadas pelo cicloturista ouro-pretano.

Mas contávamos bastante com a intuição que se distraiu curtindo o clima mineiro. O tempo estava nublado, não sabíamos ao certo o que o céu nos aguardava.

Logo na saída de Ouro Preto, encontramos alguns “bikers” mineiros que treinavam para o Iron Biker daquele ano. Trocamos algumas cordiais palavras e seguimos. No início, nos sentimos um pouco incomodados.

Quando se respira ar sem poluição é muito estranho, quase desagradável, mas com o ato de pedalar, aos poucos o pulmão vai se abrindo, limpando, e logo me acostumei. Usufrui a revigorante sensação de inspirar ar puro. Quanta ironia nessa vida!

Depois de 10 km pedalando, pensei “A trilha não é tão difícil assim.” Acreditei ser invencível. No vigésimo segundo quilômetro, a paisagem não mudava, ainda estávamos numa larga rodovia asfaltada, já deveríamos ter adentrado Minas por estradas asfaltadas, mas estreitas, onde ônibus e caminhões não trafegam. Ao invés de entrarmos rumo a Mariana, seguimos sentido Belo Horizonte.

Paramos num vilarejo a beira de estrada e confirmamos o nosso medo. Um mercador nos disse que tínhamos que voltar - e que os ouro-pretanos tinham uma falta de vontade enorme de ajudar, uns arrogantes – e nos explicou como achar o ponto de partida.

Teríamos que pedalar mais 10 quilômetros de volta, o que resultava 34 quilômetros fora da rota. Pas mal! Honestamente, o céu estava sem nuvens, nenhum sinal de chuva, um vento fresco, e o sol morno. Não nos aburrimos com o "desvio", estávamos a passeio.

Fizemos a volta e seguimos. Quilômetros depois começávamos a adentrar o Morro do Itacolomi. Finalmente, eles, os tais morros! No início pareciam fáceis, depois percebi que não havia muita opção de reta ou descida, ou melhor, quase não havia. Longos morros.

Minhas coxas usaram músculos encalhados. Mathieu pedalava firme e elegante, e eu inevitavelmente o acompanhava. O corpo tremia, a corda do contrabaixo se esticava até quase arrebentar em subidas sem fim.

Carregávamos mais de trinta e cinco quilos de bagagem. A tandem desce numa velocidade alucinante, mas na subida ela é mais lenta que as bicicletas de um lugar e pesa 20 quilos.

Nesse trajeto, atingimos a 4 Km/h km por hora numa subida, e 77 Km/h numa descida. Quando cansávamos, e isto ocorreu umas quatro vezes, parávamos por cinco minutos, comíamos uma fruta ou uma barrinha, bebíamos muita água e deixávamos o olhar se perder na paisagem:

         — Vamos?     

         — Vamos!     

         — Devagar e sempre. (esse se tornaria nosso “lema” quando havia uma elevação longa à frente)

A tarde se aproximava, invadimos a Serra de Ouro Branco. Vegetação rasteira. Variedade de orquídeas, em todo o mundo a Orquídea Sophronitis Brevipendeculata só é encontrada lá (me lembrei do filme dos irmãos Kaufman).

Para nosso alívio a “ingremitude” tinha ficado para trás. Do pé de um morro, avistamos uma fazenda, parecia ser um hotel. Havíamos consumido quatro litros de água, as caraminholas estavam secas.

A luz partia, nossa jornada completava mais de sete horas de pedalada, estávamos a dois quilômetros de Ouro Branco, exaustos e felizes, decidimos encerrar o trajeto ali e prosseguir no dia seguinte.

Ao nos aproximar, tivemos a certeza de ser um hotel fazenda. À frente dele, um lago enorme, dois garotos de uns oito anos de idade remavam numa canoinha, dando volta em torno deles mesmos. Remavam e não saiam do lugar, mas se divertiam. A cena nos arrancou gargalhadas.

Descemos da bicicleta e fomos à recepção. Era o Hotel Fazenda Pé do Morro, muito conhecido na região, mas não por nós. Havia vaga. Mas não havia cansaço em nosso corpo. Minhas pernas pareciam ter chupado Hall’s.

De maneira estranha, estávamos muito bem – não tão estranho assim, quando se respeita o limite do corpo numa aventura como essa e se bebe muito água e se alimenta bem, como fizemos, tudo depõe a seu favor.

Avistávamos um pedacinho do paraíso que ficava ali entre os morros de Ouro Branco, bem perto do céu.  

As fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem