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 NUMA TANDEM: 650 KM, 9 DIAS, 1 VIAGEM 

A  

De cruzeiro a CUNHA

Viviane Fuentes e Mathieu Gillot

 

Comparando nossa viagem com o mapa extraído do diário de José Mauricio de Barros

 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem

 

 

Asfalto, rodovia, asfalto, piche derretendo ao sol, e o sol evaporando nossa energia- Diário de 19/08/2005 - sábado

Quem nos visse naquela pousada às cinco da tarde, descalços, rodeado de árvores, entre cerveja e mapas, não desconfiaria que, horas antes, estávamos derretendo ao calor do deserto asfaltado numa tandem.

Depois do café da manhã, como sempre entre sete e oito da matina, partimos, de Cruzeiro, sentido Guaratinguetá – cogitamos trilhar o caminho antigo de Lorena, mas não o encontramos, e acabamos por seguir pela rodovia asfaltada.

Nas primeiras três horas de pedal, eu estava seca e sem humor. Por uma série de motivos, a péssima experiência da noite anterior em Cruzeiro, e tão cedo ter que encarar carros, ônibus, caminhões, tudo em alta velocidade. Era sábado.

Ao chegar à altura de Guaratinguetá, vivemos um pouco de alívio, completávamos quase metade do caminho. Mas, depois da rotatória, indo sentido Cunha, veio uma subida sacrificada no asfalto.

Conhecíamos aquele trajeto, mas de carro. Jamais imaginamos que aquela “reta” era uma subida disfarçada. Desidratados, paramos várias vezes para beber água e descansar, tentando encontrar, em vão, uma sombra.

O entorno da estrada é belo, existem charmosos ipês e montanhas - mas não parecia muito, suando numa bicicleta em pleno meio-dia. Todavia conseguimos desfrutar da beleza, mesmo com a visão embaçada.

Era como se o nosso suor pingasse no piche endurecido e, com uma pitada de sol, ele evaporasse a olhos vistos. Naquele calor, nos abstraímos totalmente, fazendo da estrada um horizonte infinito e nublado.

Sombra era miragem. Estávamos no oitavo dia da jornada. Relembrei os quilômetros percorridos na tandem por dia, consecutivamente: 70,42 km - 79.89 km – 73,01 km – 0 km – 58 km – 44.33 km – 82 km – 95,07 km - 73 km.

502,72 km pedalados (não empurramos em nenhum momento a tandem). Estávamos, então, com uma média de 71 km/dia. Concordo que o físico talvez se sentisse um pouco castigado.

Pedalamos um bom trecho no piloto automático. Um dia de pedal não vale a pena, se mal dormido, mal descansado e mal alimentado, por mais fácil que ele seja. Não é, em suma, a quilometragem que pesa.

Para esta viagem da Estrada Real, nossa proposta era de bombear o coração, limpar o pulmão, pedalar e se divertir. Não estávamos em nenhuma competição. Éramos somente nós dois. Ou melhor, três. Mathieu, eu e a tandem.

Passados vinte quilômetros, após Guaratinguetá, miragem! Avistamos uma churrascaria à sombra! Nem duvidamos de fazer um programa familiar de sábado. O local era agradável, freqüentada pela classe média da região.

A “neta”, uma garota jovem e bonita nos levou à nossa mesa e quis saber de onde vínhamos. Nos disse que, em Guará, tinha um grupo de spinning. Depois nos apresentou o avô, proprietário fundador da churrascaria, e nos sentimos em casa.

Estávamos diante da tentação da carne. Preferi não comê-la e evitar cãibras. Comi duas vezes um prato enorme de salada - amo salada, mas nos últimos dias me acabei no arroz e feijão mineiro - e sucumbi à meia coca gelada.

Mathieu apesar de ser vidrado em carne, se controlou, comeu apenas um pouco de cordeiro. Tínhamos mais 40 km pela frente e contávamos com um melhor desempenho na tandem a partir dali.

Partimos sem tomar café, mas é claro que eu fraquejaria à sobremesa, e nos despedimos. Montamos na tandem e colocamos a marcha “devagar e sempre”. A digestão abreveou nosso ritmo, mas não nos sentíamos tão exaustos quanto antes.

Era curioso fazer aquele trajeto, pela primeira dez de bicicleta, na verdade, uma descoberta. Continuávamos sem sombra e ainda com sol. Não foi fácil nos livrar do estigma do dia, mas começávamos a curtir o cenário.

Nossa aventura terminaria no dia seguinte. Aproveitamos para repensar, reavaliar a experiência singular. Tudo foi muito rápido, a idéia, a escolha da viagem, o não-caminho. Não tivemos medo de encarar, tampouco tempo para pensar.

Aprendi que tem que praticar o que chamo de “as migalhas de João e Maria”. São elas, as migalhas (anotações), que irão nos trazer a história, a sensação e o caminho, a memória de volta e à tona, no caso de um diário. E, nesse, caso, anotei quase nada.

Não estava em nossos planos escrever um diário para dividi-los com os usuários da internet. Mas as fotos também nos serviram de migalhas, para ilustrar e relembrar nome, pessoas, quilometragens, tudo o que vivemos.

Enfim, voltando a Rodovia Paulo Virgínio, o sol já não se exibia tanto. Tínhamos acabado de decidir não ir até a cidade que sobrevive principalmente do artesanato, Cunha. Arriscaríamos uma pousada um pouco antes dela, na beira estrada.

Chegamos ao “Tudo na Roça”. Lá tem coisas simples e deliciosas para beliscar e vende todo tipo de cacarecos. Em seu estacionamento só 4X4 e SUV’s. A bonitona proprietária, de braços fortes e peculiares, veio até nós. Pedimos o suco de sempre.

Contamos o nosso dia, e que procurávamos um lugar para dormir. Nos indicou uma pousada que, imaginamos, deveria ser BEM cara, se decidíssemos encarar – mas depois do fiasco da noite anterior, não queríamos correr o risco.

Conhecemos ciclistas que fizeram a ER de bike gastando no máximo R$ 100,00. O próprio José Maurício de Barros foi um deles. Mas, desde o início, nossa proposta foi fazer viajar de bicicleta com conforto. Quem disse que isso não é possível?

Fomos parar no Hotel Fazenda São Francisco, na Rodovia Paulo Virgínio (SP 171) km 26,5. O terreno e as instalações do nosso pernoite eram espetaculares. Sauna, piscina, animais, muito verde. Teríamos o descanso num chalé bem fresco.

Descarregamos as bagagens e nem titubeamos. Colocamos maiô de banho, e fomos para a piscina – com o corpo ainda rabiscado de graxa. Encoberto de nuvens, laranja ao longe, e lá estávamos nós, num quase pôr-do-sol, fazendo um balanço da viagem.

Na manhã seguinte, com direito a coalhada fresca, mel, cereais, pães recém saído do forno ao nascer do dia, cheiro de capim, tudo isso estava em nossa mesa e ao nosso redor. Adoramos café da manhã no mato!

Antes de partir, fomos passear. Conhecemos um simpático burro chorão que fora amamentando de mamadeira, como gente. Visitamos bezerrinhos e vacas e terminamos por conhecer a capela que havia no terreno.

Bagagens a postos, repomos o estoque de água e lá fomos nós para Paraty, trotaríamos a alucinante Serra de Cunha - já a havíamos descido de tandem, mas não com 35 quilos de bagagem.

Até ali nos mantínhamos ilesos, sem tombo, sem machucados, sem pneu furado, tudo perfeito. O que o nosso último dia de pedal nos prometia? Ainda não sabíamos. Como diriam os espanhóis. A ver!

 
 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem