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 NUMA TANDEM: 650 KM, 9 DIAS, 1 VIAGEM 

A 8º 

De carandaí  a TIRADENTES

Viviane Fuentes e Mathieu Gillot

 

Acordamos no meio da selva no município de Carandaí

 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem

 

   

De manhazinha, leite ao pé da vaca - Diário de 14/08/05, segunda-feira

Levantamos às seis da manhã, ansiosos para descobrir onde havíamos pernoitado - Carandaí é uma cidade mineira entre Cupim e Barbacena com pouco mais de 20 mil habitantes, mas não estávamos exatamente lá.

Ao sairmos do nosso chalé, as folhagens encharcadas de orvalho se arremessaram aos nossos olhos. Uma névoa aproveitava a ausência do sol para abrir-se sobre a natureza. Nas plantas ainda a friagem da noite passada.

Um silêncio quase absoluto e delicioso tomava conta do lugar. As crianças da noite anterior dormiam naquele horário, só ouvíamos o tilintar das folhas, som de delicadas cascatas e canto de pássaros que não reconhecíamos.

Ali era o Hotel Estalagem Fazenda Lazer, no município de Carandaí, que tem um terreno  enorme, com muitas espécies de plantas, uma rica vegetação. E aves, muitas aves. Pavões. Muitos deles. Nas árvores e ao redor da piscina. Fêmeas delgadas e machos lequeados.

Logo que começamos a caminhar, descobrimos que um estranho ruído que ouvíramos pela madrugada, como se duas madeiras ocas batessem uma na outra, era de um tucano, naquele momento, pousado na sacada de um chalé suspenso por madeiras robustas.

O tucano é um pássaro estranhamente magnífico - aquele que vimos era domesticado. Soubemos que havia sido pego na alfândega, ilegal, e o Hotel Estalagem o adotou, como fazia com outros animais também. Davam abrigo.

Vimos araras em duplas, em trios, sozinhas, coelhos chinchilas correndo pela grama, fazendo ginástica matinal... Filmamos um pouco de tudo e, assim que o relógio marcou oito horas, fomos tomar o café da manhã.

Durante a refeição, aproveitei para ler o papel que a recepcionista havia me dado na noite anterior com a programação de atividades: exposição de cavalos Mangalarga, passeios de carruagem, charrete, carro de boi, pônei, etc.

Gostamos da sugestão “leite ao pé da vaca” com música clássica - quando crianças, eu no Brasil, Mathieu na França, tivemos a oportunidade de presenciar leite sendo tirado de vaca, mas nunca o fizemos.

Terminamos de comer os deliciosos pães de queijo, a repetição, e fomos até a área dos estábulos. Lá, cavalos, pôneis e vacas estavam molhados, haviam tomado banho a pouco e, de fato, tocava Mozart. Fomos em direção das vacas.

Um senhor forte, chapéu de palha, nos mostraria como fazer a proeza de mexer na teta do animal sem levar coice – na verdade, para a segurança dos hóspedes, as patas traseiras da vaca ficavam amarradas por corda.

Na minha vez, tentei, mas me deu aflição, achei a teta da vaca muito seca e tive medo de machucá-la. Mathieu o fez perfeitamente, na segunda tentativa, com desenvoltura, tirou o equivalente a um copo de leite e o bebeu.

Estávamos contentes feito crianças. Mathieu abria um largo sorriso, vaidoso de seu desempenho. Decidimos voltar ao chalé. O dia acordava em plena forma, ensolarado, e sem nuvem no céu. Hora passada de partir. Ritual: carregar bagagens na tandem.

3º DIA DE PEDAL - Diário de 14/08/05, segunda-feira

Não tínhamos a menor idéia de o rumo a tomar, estávamos por conta de um mapa feito à mão que nos deram na pousada, uma cópia tirada no fax - o que tínhamos imprimido do ciclista do José Mauricio, para aquele dia, não nos valeria, por termos saído da rota.

Tínhamos que chegar até Lagoa Dourada, pelo sertão, e depois seguir por uma rodovia asfaltada, em direção a São João do Del Rey - provavelmente o trajeto teria 55% de terra e o resto, asfalto.

Mathieu e eu espirrávamos, estávamos febris - eu falo: quem se acostuma com a poluição, quando respira ar puro fica doente, mas, de fato, nossos pulmões se desintoxicavam a cada dia de pedal!

Cinco quilômetros após a saída da Hotel Estalagem, passamos pelo Povoado dos Melos. Várias casinhas roceiras, uma próxima a outra. Porcos soltos, homens capinando, crianças brincando na beira da estrada.

Dez quilômetros depois, atravessamos um povoado menor ainda: Arame. Falamos com alguns moradores para nos interarmos de “onde e como” - é curioso como dão as coordenadas, mais que obvio, mas para quem não está acostumado...

Direita e esquerda não existe para o povo do sertão, as referências são: depois da “moitinha” virando a “encruzilhada”  passando a “lavoura” e depois do terceiro “tomateiro”... Perguntei a Mathieu: Tomateiro? Como é um tomateiro? Ele diz: O que é um tomateiro?

Brincadeiras a parte, seguimos. Nem direita nem esquerda. No centro. No centro-seco. Aos poucos, o restinho de civilização se transformava em natureza mineira profunda. Estradas largas de terra, muitos morros, poucas árvores e animais.

Era meio-dia, o ar bem seco e o sol pelava, nenhum carro, nenhum caminhão, durante duas horas de pedal, mas quando raro passava, levantava uma poeira longitudinal. Tudo ficava marrom, até o céu.

O selim de Mathieu começava a machucar o traseiro dele e, para aliviar o atrito, fizemos algumas paradas breves. Na tandem, o piloto não pode levantar o traseiro do banco para aliviá-lo ou para pegar força e socar o pedal.

Demorou um pouco para nos aquecermos, Mathieu é um menino de ouro e não reclama nas adversidades e, com o passar dos morros, mandamos ver no pedal, ao mesmo tempo em que tossíamos e expectorávamos.

Consumimos bastante água por conta da gripe e para aliviar a secura da garganta e, por pouco, não nos acidentamos. Os mata-burros da Estrada Real poderiam se chamar mata-ciclistas.

Na região, eles são feitos no sentido em que a roda da bicicleta passa e o vão entre uma tira de madeira e outra é da largura do pneu – bons pilotos que somos, conseguimos frear antes de cada um deles, que sempre se escondiam após uma grande descida.

Completados 22 quilômetros, chegamos a Lagoa Dourada. Fizemos uma parada de quinze minutos. Compramos chocolate - barrinha de cereais virara artigo importado por aquelas bandas. Repomos as garrafinhas de água.

Atravessamos a vila, metade asfaltada, metade de terra, de casinhas bem simples e simpáticas. Crianças e adultos olhavam a estranha bicicleta com os olhos estatelados. Uns riam, outros pareciam ter visto um OVNI.

Até que a atração saiu da cidadezinha e partiu rumo à rodovia asfaltada abraçada por morros definitivamente bucólicos. Raramente havia sombras ou carros na estrada. Muitas descidas e subidas, suaves e longas.

Pedalamos seguros: onde há piche o cosmopolita não se perde. Não como muita freqüência, havia placas (praticamente inexistente, anteriormente). O que era uma maravilha, nos dava um pouco de tranqüilidade já que não tínhamos mapa.

Seguiríamos as placas que indicassem a direção de São João Del Rey, mas praticamente bastava seguir reto. Não encontraríamos muitas bifurcações. Mathieu tinha visto, pela internet, uma loja bacana de acessórios para bicicleta e queria conhecê-la. Mas era tarde quando cruzamos o limite da cidade.

Preferíamos seguir adiante. Em determinado trecho, saímos da rodovia e trotamos um trecho de paralelepípedo. Começamos a avistar a Serra de São João, um enorme e paredão verde que abraça Tiradentes, Patrimônio Artístico Nacional, tombada em 1938.

Em menos de uma hora, estaríamos na vila de pedras capistranas (referência à época do presidente mineiro João Capistrano Bandeira de Melo) vendo uma multidão vestindo roupas de época.

Não, não era alucinação da nossa fadiga. Uma novela estava sendo gravada na cidade. “A Escrava Isaura” Pela Rede Record. Atores trajavam de acordo, e estavam por todos os lados. Para os habitantes, uma atração.

Paramos num bar/lanchonete, com vista para a tandem e as bagagens. Sentamos pedimos um chope para cada um. Esticamos as pernas, fingindo ser turistas comuns.

Havíamos pedalado 73,01 Km em 6h29min, numa velocidade média de 11,2 km/h e atingimos máxima de 66 km/h. Pedimos outro chope e ficamos inertes a observar o movimento dos cavalos, charretes e das pessoas.

Curtiríamos o restinho da tarde, sem nenhum outro tipo de preocupação a não ser a de “estar”. Afinal, nossa missão do dia já estava cumprida.

 
 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem